PROTESTANTISMO

A REFORMA PROTESTANTE
O Princípio da Reforma (1324 - 1459)


Supõe-se que João Wycliff nasceu nas proximidades de Richmond, no condado de York, na Inglaterra, pouco mais ou menos em 1324. A pobreza de seus pais, que parece terem sido camponeses, não o impediu de entrar, na idade própria, na universidade de Oxford, onde aproveitou todas as ocasiões para se instruir, ganhando bem depressa as boas graças do seu tutor, o piedoso e sábio Thomas Bradwardine, que fazia dele muito bom juízo. Durante os seus estudos adquiriu um bom conhecimento não só das leis civil, canônica e municipal, mas também da ruína da natureza humana, como as Escrituras a ensinam, da inutilidade do merecimento humano para a salvação, e da grandeza da graça divina, pela qual o homem pode ser justificado sem as obras da Lei. Diz-se também que, por conselho do seu tutor, estudara as obras de Grostete, e dali lhe viera a idéia de que o papa era o Anticristo.

Os seus ataques às ordens mendicantes, que atraíam os estudantes da universidade para os seus mosteiros, tornaram-no notável em Oxford. Ele escreveu alguns folhetos sobre o assunto. Era Wycliff nesse tempo professor da universidade, mas isso não o impediu de continuar no seu trabalho pelo Senhor, e, aos domingos, despia a toga de professor e pregava ao povo o Evangelho simples na linguagem popular.
A fama das suas pregações bem depressa chegou a Roma, e os frades mendicantes, cuja influência estava muito abalada pelo seu ensino, apressaram-se a dar a saber ao papa os seus receios. Para isso usaram de um meio muito eficaz extraindo dos escritos de Wycliff dezenove artigos, e mandando-os ao papa, juntamente com as suas cartas; e, como a maior parte destes artigos, combatiam de uma maneira muito clara as pretensões temporais do papa, pode-se facilmente imaginar qual foi o resultado. Nove dos extratos foram logo condenados como heresias e outros declarados errados, e foram mandadas imediatamente ordens à Inglaterra para que o ousado herege fosse levado aos tribunais pelas suas opiniões. Isto foi o princípio do conflito, mas Roma ainda desta vez se enganou.
Ataque ao Reformador
Ao atacar o reformador, tinham atacado um homem com amigos, porque Wycliff tinha-os em todas as classes. A classe popular estimava-o porque ele se interessava pela sua causa e lhes explicava as Sagradas Escrituras em linguagem que podiam compreender; os fidalgos eram seus amigos porque ele os ajudava a resistir ao clero; e em Oxford não era menos estimado pela sua piedade do que respeitado pelo seu saber.

No mês de fevereiro do ano 1377 foram abertas as sessões da Convocação de S. Paulo, e para ali se dirigiu Wycliff, acompanhado de seus amigos João de Gaunt, duque de Lencastre e Lord Percy, marechal da Inglaterra. Receavam estes que se ele fosse sozinho não seria ouvido com imparcialidade, e podia talvez ser vítima de um jugo odioso; e quando começou o julgamento, a conduta de Guilherme Courtenay bispo de Londres mostrou bem que tinham razão de ter receios.

A multidão de gente dentro da catedral era enorme, e o marechal teve de empregar a sua autoridade para poder chegar ao pé dos juízes. Isto excitou o bispo imensamente, e seguiu-se uma cena tumultuosa. "Se eu soubesse, senhor," disse ele, "que queríeis ser senhor nesta igreja, teria tomado as minhas medidas para vos impedir de aqui entrar". O duque de Lencastre, que era nesse tempo regente do reino pela menoridade do rei Ricardo II, aprovou o ato do marechal, e observou que era "necessário manter a ordem apesar dos bispos". Courtenay a custo conteve a sua ira, mas quando, em seguida, o marechal pediu uma cadeira para Wycliff, exclamou, encolerizado, "Ele não deve sentar-se; os criminosos conservam-se de pé perante seus juízes". De ambos os lados se levantou novamente uma grande discussão, e só Wycliff se conservou silencioso; no entanto, o povo, seguindo o exemplo dos seus chefes, começou a exprimir sua própria opinião com atos de violência. Era impossível prolongar a sessão em tais circunstâncias; portanto, encerraram o tribunal, e o reformador saiu da catedral acompanhado pelo duque de Lencastre.
Dois Papas ao Mesmo Tempo
Por algum tempo deixaram-no em paz, e Roma teve de se ocupar duma questão mais séria, que exigia toda a sua atenção. Tratava-se nem mais nem menos do que a eleição de um papa rival em Findi, Nápolis. O pontífice romano, Urbano VI, desgostara de tal maneira os seus cardeais pela sua aspereza e severidade, que estes tinham julgado conveniente prestar a sua fidelidade a outro, e tinham investido dessa dignidade Roberto, conde de Genebra. Este, depois de ser devidamente eleito, estabeleceu a sua residência em Avignon, França, sob o título de Clemente VII, e ali foi reconhecido como papa pela Escócia, Espanha, França, Sicília e Chipre. O resto da Europa ainda considerava Urbano como o legítimo "sucessor" de S. Pedro.

Como era de esperar, este notável cisma ainda mais excitou o zelo de Wycliff contra o papismo, e deu-lhe novos motivos para vencer. "Confiemos na ajuda de Cristo", exclamou ele, "porque Ele já começou a ajudar-nos pela sua graça, fendendo a cabeça do Anticristo em duas, e fazendo com que as duas partes comecem a guerrear uma contra a outra". Ele já tinha declarado que o papa, o soberbo padre mundano de Roma, era o Anticristo, e o mais maldito dos exploradores da bolsa alheia, e agora Wycliff não teve escrúpulos em afirmar que tinha chegado o momento oportuno para extinguir o mal inteiramente.
Wycliff Citado de Novo
Afirmando isto, porém, antecipava o futuro, e sendo citado segunda vez para comparecer perante os seus acusados, viu que muitos dos seus amigos o tinham abandonado por causa das suas idéias extremistas, e entre eles o duque Lencastre. Mas Deus não o tinha abandonado, e o abandono dos amigos terrestres deu-lhe pouco cuidado. No seu primeiro julgamento tinha ele talvez estado, sem o saber, a fazer da carne a sua arma, mas agora não era assim, e apresentou-se no tribunal sozinho. Contudo, bastantes pessoas que esperavam ser ele provavelmente devorado naquela caverna de ladrões, encaminharam-se para a capela, na intenção de lhe acudir aos primeiros sintomas de traição que se manifestassem.

Os prelados tinham ido para o concílio confiados e altivos, certos de uma vitória fácil, mas ao observarem estas manifestações populares, ficaram inquietos e, quando, ao começar os interrogatórios, receberam uma ordem da mãe do jovem rei proibindo-os de pronunciar qualquer sentença definitiva sobre a doutrina conduta de Wycliff, a sua derrota foi completa.
Wycliff Traduz a Bíblia
Assim pois, pela graça de Deus, Wycliff escapou ainda mais uma vez das garras dos seus perseguidores, e pôde, pouco depois, ocupar-se com a grande obra da tradução da Bíblia na linguagem do país. Havia muito tempo que ele manifestara o desejo de que os seus patrícios pudessem ler o Evangelho da vida de Cristo em inglês, e havia agora todas as possibilidade de ver o seu desejo satisfeito. Poucos meses mais tarde essas probabilidades tornaram-se em certeza, e, à proporção que o trabalho ia chegando ao fim, o ousado reformador começou a sentir que a sua missão na terra estava quase terminada. No ano de 1383 viu a sua obra completa, e, apesar de os bispos fazerem toda a diligência para que a versão fosse suprimida por lei do Parlamento, os seus esforços não tiveram resultado, e em breve a Bíblia começou a circular por todo o reino.
Morte de Wycliff
Wycliff porém não viveu o suficiente para ver a oposição dos bispos, pois que a 31 de dezembro de 1384, depois de uma vida agitada de sessenta anos, entrou no descanso eterno; e, posto que os seus amigos receassem que ele morresse de morte violenta, Deus tinha determinado outra coisa e assim morreu pacificamente em Luterworth. Os agentes de Roma foram pois logrados na esperança de alcançar a desejada presa, mas ainda assim o seu corpo foi mais tarde desterrado e queimado, e as cinzas lançadas num regato próximo, "O regato", diz Fuller, "levou as cinzas ao rio Avon; o Avon levou-as ao Saverna; o Saverna ao canal, e este ao grande oceano. E assim as cinzas de Wycliff são os emblemas da sua doutrina, que se acha agora espalhada pelo mundo inteiro".
Os Lollardos
Quando Wycliff morreu os seus adeptos eram muitos, e havia-os entre todas as classes da comunidade. Parece que era em Oxford que havia maior número, e quando o Dr. Rigge, chanceler da universidade, recebeu ordem para impor silêncio àqueles que favoreciam o reformador, respondeu que não ousava fazê-lo por ter medo de ser morto. Todos os que adotaram publicamente a doutrina de Wycliff eram chamados de lollardos, mas é certo que mesmo antes de Wycliff aparecer já existiam muitos cristãos com essa denominação. As suas doutrinas e opiniões eram em tudo iguais às do reformador, e parece que foram tão infatigáveis como ele em as espalhar. Assim como Wycliff, eles também ensinavam que "o Evangelho de Jesus Cristo é a única origem da verdadeira religião; que não há nada no Evangelho que mostre que Cristo estabeleceu a missa; que o pão e vinho, ainda depois de consagrados, ficam sendo pão e vinho; que os que entram para os mosteiros ainda se tornam incapazes de observar as ordens de Deus; e, finalmente, que a penitência, a confissão, a extrema unção, não são precisas, nem se fundam nas Escrituras Sagradas".

Pensar que Roma deixaria viver tais incorrigíveis hereges, sem se incomodar, seria supor que ela fosse capaz de tolerância e misericórdia – qualidades estas que nunca patenteou. Não era este o seu modo de proceder; e se os lollardos não foram logo perseguidos pela sua cólera, foi unicamente porque lhes faltavam os meios de tornar bastante eficaz a perseguição. Contudo, a subida ao trono de Henrique IV forneceu-lhe a oportunidade que esperava. Os padres e os frades tinham estado no entanto bastante ocupados em espalhar falsos boatos sobre o procedimento revolucionário dos lollardos, e tinham inspirado tais receios à nação que, quando no ano de 1400 o novo rei fez publicar um edito real determinando que os hereges fossem queimados, o Parlamento prontamente o sancionou.
Tempo de Martírios
Se fôssemos descrever todos os martírios que fizeram os "hereges" sofrer durante esta perseguição, teríamos de escrever um martirológio, e isso iria muito além dos nossos limites. Guilherme Sautree teve a honra de ser a primeira vítima desta nova lei. A ele seguiu-se João Badby, um artista de Worcester, cujo martírio foi presenciado pelo jovem príncipe de Gales – depois Henrique V. Conta-se deste mártir que, quando acenderam o fogo, ele pedira misericórdia, e Henrique ordenara que fosse tirado das chamas. Trazido à sua presença, o príncipe perguntou-lhe: "Queres abandonar a heresia e conformar-te com a fé da santa madre igreja? Se queres, terás sustento por um ano tirado do tesouro do rei". Mas João Badby tinha estado a pedir misericórdia de Deus e não dos homens, e a sua firmeza não se abalou com mais esta prova. Foi, em conseqüência, levado segunda vez para as chamas.

Como os lollardos aumentassem cada vez mais, o arcebispo Arundel fez convocar um concílio no ano de 1413, a fim de procurar melhores meios de os suprimir, e desde esse tempo, durante perto de um século, as chamas da perseguição foram ardendo por toda a Inglaterra, e conservou-se o mesmo rigor na busca dos hereges; mas Deus tinha decretado que a obra dos seus servos prosseguisse; e quem poderia deter a sua mão? As miseráveis criaturas de Roma podiam fazer diminuir o pequeno bando de cristãos, por meio do fogo e outras torturas, e prisões (as tribulações eram o quinhão que os fiéis discípulos esperavam), mas não podiam destruir a obra que Deus tinha começado. A sua Palavra – aquela semente incorruptível que vive e permanece eternamente – estava nas mãos do povo, e enquanto o poder dela estivesse entre eles, as armas de Roma eram impotentes, e a obra de Deus nas almas havia de se efetuar para a sua glória.





Os Reformadores Antes da Reforma (1400 - 1500)
O Evangelho na Boêmia
Enquanto os lollardos eram perseguidos na Inglaterra, dava-se um despertamento religioso noutro ponto da Europa, para o qual chamamos a atenção do leitor. Este despertamento teve como chefe o mártir reformador João Huss.

Não resta dúvida de que foram os escritos de Wycliff que acenderam as primeiras centelhas desta revivificação, e as circunstâncias que conduziram a isto, às quais nos podemos apenas referir em breves palavras, assim descritas: A esposa de Ricardo II de Inglaterra era uma princesa boêmia, irmã de Wenceslau, rei de Boêmia. Era mulher piedosa, e tinha estudado as Escrituras Sagradas, sendo isto mesmo afirmado pelo perseguidor arcebispo Arundel, que disse que "Embora ela fosse estrangeira, estudava constantemente os quatro Evangelhos em inglês, com as explicações dos doutores; mostrando-se neste estudo e na leitura dos livros piedosos mais diligente do que os próprios prelados". Pela morte do seu marido, ela voltou para a Boêmia levando consigo as obras do reformador.

Depois um sábio boêmio de Praga, chamado Jerônimo, visitou a Inglaterra, travando conhecimento com vários lollardos, em cujos ensinos se embebeu. Em seguida voltou para a sua cidade onde ensinou as novas doutrinas com zelo e bom êxito.
Num período ainda posterior (1404), dois ingleses de Cantuária também tinham ido a Praga, e ali manifestaram sentimentos antipapais. Estabeleceram a sua residência nos subúrbios da capital, em casa de um tal Lucas Welensky, e, com seu consentimento, pintaram nas paredes do seu quarto dois quadros, um representando a história da paixão de Cristo, o outro a pomba da corte papal. A significação da antítese daqueles dois quadros era bastante clara; o povo foi ver aquelas pinturas toscas, e Huss, que era então pregador na capela de Belém, e igualmente deão da faculdade de filosofia, referiu-se a elas nos seus sermões.


João Huss
Havia algum tempo que Huss mostrara a sua simpatia pelas idéias de Wycliff. Era homem de saber profundo, de um entendimento claro, e um hábil dialético; alto, magro, pálido, e de olhos cinzentos e pensativos, parecendo mais um estudante do que um padre. As suas maneiras eram graves e dignas; a sua moral austera e irrepreensível. Assim como Wycliff, pregava sempre ao povo na sua própria língua e, como ele, era severo e enfático quando fazia a exposição dos abusos que então prevaleciam; mas como era um favorito da corte não foi incomodado no princípio. Ele amava e respeitava a memória do reformador inglês, e ouviam-no orar muitas vezes na capela de Belém para que a sua alma pudesse ir juntar-se à de Wycliff depois da sua morte.

O grande cisma da cristandade papal era ainda assunto de discussão quando Huss era pregador na capela de Belém e reitor popular da Universidade, e não era provável que ele deixasse isso passar sem algumas palavras de censura. Mas o seu zelo neste ponto pouco mal lhe fez, visto que os que deviam olhar pelos decretos de proibição que foram publicados contra ele, deles não fizeram caso. Foram outras circunstâncias que fizeram dele um herege aos olhos de Roma e uma era daquelas que mal podiam esperar ser perdoadas.


Huss em Conflito com o Papa

No ano de 1411 o papa de Roma, João XXIII, homem de vida dissoluta e hábitos guerreiros, proclamou uma cruzada contra Ladislau, rei de Nápoles, e ofereceu as costumadas indulgências a todos aqueles que se reunissem ao exército papal. Huss ficou justamente indignado por ver a cruz de Cristo degradada para fins tão anticristãos, e pregou contra a cruzada. O povo, encantado pela sua eloqüência, recusou atender aos missionários do papa, e muitos interrompiam as suas arengas com exclamações encolerizadas. Esses representantes papais não estavam porém habituados a tal tratamento, e não era natural que se submetessem em silêncio. Contudo, ferir o chefe do movimento era uma medida bastante perigosa e intempestiva, e também não era prudente, no estado de agitação em que se achava o povo; não deram qualquer passo para a sua própria defesa. Mas prenderam em segredo três dos chefes, que foram lançados na prisão por ordem do senado, e logo executados secretamente. Mas o sangue dos assassinados foi visto correr pelas grades da prisão, e assim a morte deles tornou-se pública para um levantamento geral, e o povo precipitou-se em massa contra a Câmara Municipal, tomando-a de assalto. Entrando na prisão, apoderaram-se dos corpos decapitados das vítimas e levaram-nos a um lugar de sepultura, dando-lhes honras de mártires. No entanto, Huss, prevendo as conseqüências que lhe podiam acontecer por este ato ousado e ilegal do povo, retirou-se da cidade e continuou as suas pregações em sítios onde estivesse mais seguro. Foi citado pelo papa para comparecer perante o tribunal do Vaticano, mas não fez caso, sendo, por esse motivo, excomungado. Apesar disso continuou pregando do mesmo modo, aumentando diariamente o número dos seus convertidos e adeptos.


Huss Citado para Comparecer em Constancia


No entanto, foi convocado um concílio de prelados e outros em Constância, cidade imperial nos Alpes, do lado da Alemanha, com o fim de desfazer o grande cisma que existia, e suprimir as heresias de Wycliff, e Huss foi citado a comparecer perante ele. Podíamos encher páginas contra os horrorosos segredos e as blasfêmias públicas dos membros deste concílio, mas esses pormenores seriam revoltantes; apenas nos referiremos a eles por dizerem respeito a João Huss, e o pérfido tratamento que deram a este homem verdadeiramente nobre.
Quando o reformador boêmio recebeu a citação para se apresentar em Constância, não hesitou em obedecer. Não tinha aparecido em Roma, por conhecer a deslealdade do papa, mas com a assembléia de Constância o caso era diferente. Os prelados, segundo ele pensava, eram os augustos representantes daquela igreja verdadeira a qual ele pertencia, e ele sabia que um dos fins para que o concílio fora convocado era idêntico àquele que muitas vezes estava mais no seu coração quando pregava. Ainda assim, apesar da confiança que tinha nos prelados, entendeu que um salvo-conduto do imperador alemão, Sigismundo, podia protegê-lo, e por isso procurou alcançá-lo. Neste salvo-conduto o imperador ordenava que o deixassem viajar livremente, e, munido desse documento, o reformador partiu na sua jornada.


Prisão de Huss

Agora notemos a perfídia de Roma: Assim que o reformador pôs os pés em Constância foi logo agarrado e lançado na prisão, sendo acusado de heresia. O concílio sabia perfeitamente que ele tinha um salvo-conduto, mas esta dificuldade foi logo resolvida, publicaram um decreto dizendo que não se devia guardar palavra com hereges. O povo ficou espantado quando soube da prisão de Huss, e os seus clamores indignados chegaram da Boêmia aos ouvidos do imperador. Ele ainda chegara a Constância, e ao princípio parecia disposto a favor do povo em condenar a traição do concílio, chegou até a falar em abrir à força a prisão em que o reformador estava encerrado, mas quando chegou à cidade, os argumentos dos padres venceram seu bom critério, e deixou-os fazer ao prisioneiro o que queriam.
A masmorra em que Huss tinha sido encerrado era úmida e imunda, e o alimento pouco, e não era saudável. Esperavam por este tratamento diminuir-lhe a força, e poderem fazer dele o que quisessem. Tais esforços tiveram tão bom resultado que o reformador ficou gravemente doente.
Começo do Julgamento de Huss
No começo de junho de 1415 e antes de estar completamente restabelecido, começou o seu julgamento público, mas apesar de estar tão fraco, foi-lhe proibido ter um advogado, porque, diziam seus inimigos, um herege não podia ter defensor. Houve duas acusações contra ele; a primeira de crer nas doutrinas de Wycliff, a segunda, de estar "infectado com a lepra dos valdenses". Quando foi chamado para responder pela primeira acusação apelou para a autoridade das Sagradas Escrituras, mas a sua voz foi imediatamente abafada por um tumulto de escárnio e zombaria. Era pois impossível tentar qualquer defesa em tais circunstâncias, e quando lhe apresentaram o segundo ponto, ficou silencioso. Isto mesmo condenou-o, visto que seu silêncio foi tomado como uma tácita confissão de sua culpa. Por fim a excitação tornou-se tão grande que foi impossível continuar o julgamento, e a assembléia retirou-se.
No segundo dia apareceu o imperador em pessoa para manter a ordem, e desta vez parece que tudo correu com muito mais sossego, apesar de os prelados não o poderem conservar até o fim. Quando, no decurso do julgamento, Huss concordou que tinha dito que Wycliff era um verdadeiro crente, e que a sua alma estava agora no Céu, e que não podia desejar maior salvação para a sua própria alma do que a que estava gozando a alma de Wycliff, os "santos" padres não puderam conter uma gargalhada. No terceiro dia concluiu-se o julgamento, e Huss foi de novo mandado para a prisão enquanto se lavrava a sentença.
Durante todo o julgamento parece que houve um amigo que se pôs ao seu lado de uma maneira própria duma grande afeição; este amigo foi um cavaleiro boêmio chamado Chulm. Em todos os dias do julgamento esteve sempre com ele, e acompanhou-o durante todo o seu penoso e aborrecido cativeiro; e tudo isto com grande risco para si próprio. "Meu querido mestre", disse ele depois de passar o terceiro dia de julgamento: "eu sou um ignorante, e portanto incompetente para dar conselhos a um homem de tanto saber como o senhor. Contudo, se está intimamente convencido de alguns desses erros que lhe atribuíram publicamente, peço-lhe muito encarecidamente que não se envergonhe de se retratar; mas se, pelo contrário, está convencido da sua inocência, não quero de modo algum aconselhá-lo a dizer seja o que for contra a sua consciência, antes quero exortá-lo a suportar qualquer espécie de tortura a renunciar a qualquer coisa que considere como verdade". Huss ficou profundamente comovido pelo sincero e bondoso conselho do seu amigo, e disse-lhe com as lágrimas nos olhos que Deus bem sabia como ele de boa vontade se retrataria, debaixo do juramento, de qualquer exposição que tivesse feito contrária às Escrituras Sagradas. Decorreu um mês, e parece que durante esse tempo o cavaleiro esteve sempre com ele, provando, assim, que era um fiel discípulo e um verdadeiro amigo.


Fim do Julgamento de Huss

No dia 6 de Julho de 1415 ele compareceu pela última vez perante o concílio, e ouviu então a sua sentença. A sessão teve lugar na catedral, e Huss esteve no pórtico enquanto se celebrava a missa, por isso que a um herege não podia ser permitida a entrada na igreja durante a cerimônia. O bispo de Lodi pregou o sermão e escolheu para seu tema este texto: "Para que o corpo do pecado seja desfeito" (Rm 6.6). As suas observações foram uma furiosa exposição contra as heresias de Huss. Os artigos de acusação foram então lidos, e a sentença pronunciada. Durante a leitura dos artigos de Huss fez várias tentativas para falar, mas sempre em vão; e quando depois disso ele ofereceu uma oração a Deus a favor dos seus inimigos, pedindo-lhe que lhes perdoasse as suas injustiças, as suas palavras foram recebidas com escárnio. O mártir, forte na sua integridade, ergueu as mãos, e exclamou: "Eis aqui, bendito Salvador, como o concílio condena como erro o que Tu tens prescrito e feito, quando, dominado pelos inimigos, entregastes a tua causa a Deus teu Pai, mostrando-nos por este meio que quando estamos oprimidos podemos recorrer à justiça de Deus". O fervor da sua eloqüência tinha chamado a atenção dos seus inimigos, e durante as poucas observações que ainda fez, guardaram um silêncio próprio de quem não se sente à vontade. Apenas Sigismundo parecia estar tranqüilo, mas a sua tranqüilidade durou pouco. Huss, desviando a vista dos prelados e fixando os olhos com firmeza no imperador, disse com voz clara e vibrante: "Vim a este conflito confiando na boa fé do imperador". Um vivo rubor coloriu então as faces desse homem, e Huss não disse mais uma palavra.
Foram-lhe em seguida arrancadas as vestes sacerdotais, e puseram-lhe na cabeça uma mitra de papel onde se viam pintados três demônios. O cálix sacerdotal, que lhe tinha sido colocado nas mãos, foi-lhe tirado com estas palavras: "Maldito Judas, que, tendo abandonado o conselho da paz, entraste no dos judeus, arrancamos-te das mãos este santo cálix onde está o sangue de Cristo". "Pelo contrário", disse Huss numa voz forte, "confio que pela graça de Deus ainda hoje hei de beber dele no seu reino". Os bispos retorquiram então: "Nós entregamos a tua alma aos demônios do Inferno", ao que Huss respondeu: "E eu entrego o meu espírito nas tuas mãos, ó Senhor Jesus Cristo; a ti entrego a alma que tu salvaste!"


Morte de João Huss


Tendo sido assim privado de um modo tão aviltante do seu cargo sacerdotal, foi entregue ao imperador, o representante do poder secular: "Pertence-vos o alto cargo", disse-lhe o bispo de Lodi, "de destruir as heresias e cismas, e com especialidade os obstinados hereges". O imperador desempenhou "este alto cargo" sem demora. O lugar de suplício não era longe, e Huss foi para ali conduzido imediatamente sob a guarda do eleitor palatino e oitocentos soldados a cavalo. Quando para ali se encaminhava, o seu rosto brilhava de alegria, e o povo que se apinhava no caminho estava admirado das suas piedosas orações. Chegando ao lugar de execução não lhe foi permitido a palavra ao povo, mas a oração que fez enquanto o estavam amarrando ao poste chegou aos ouvidos de todos: "Senhor Jesus, eu sofro humildemente esta morte cruel por amor de ti, e rogo-te, Senhor, que perdoes aos meus inimigos". No ultimo momento ainda fizeram uma tentativa para o induzir a assinar uma retratação, mas não o conseguiram: "Tudo o que escrevi e assinei foi com o fim de livrar as almas do poder do Demônio, e livrá-las da tirania do pecado; e sinto alegria em selar com o meu sangue o que escrevi e assinei". O eleitor, que tinha feito esta última tentativa, afastou-se então do lugar, e largaram fogo à lenha. Mas os sofrimentos do mártir acabaram depressa, e enquanto ainda orava a Deus decaiu-lhe a cabeça sobre o peito e sufocou-lhe uma nuvem de fumaça. Assim pois João Huss, que tinha dado uma boa confissão, obteve a coroa do martírio e partiu para estar com Cristo.


Jerônimo de Praga
 
O amigo de Huss e seu companheiro de trabalho, Jerônimo de Praga, seguiu-o em pouco tempo. Era homem de maior erudição, mas talvez de menos paciência, e as torturas a que o submeteram durante um bárbaro cativeiro de quase um ano enfraqueceram de tal maneira o seu espírito que conseguiram dele que assinasse uma retratação. Mas a vitória dos seus inimigos pouco tempo durou: na sua misericórdia o Senhor fortaleceu a sua alma, e ele em breve se retratou do que se tinha retratado. Merece a pena notar-se que, apesar de todos os sofrimentos por que passou durante esse tempo, a sua memória ficou clara e a sua inteligência tão vigorosa como antes, e a sua eloqüência era tal que provocava a admiração até dos seus próprios inimigos.

Foi no mês de maio de 1416, que Jerônimo se apresentou à sua última audiência. Não deixou de censurar os seus adversários por o terem conservado preso mais de onze meses, carregado de ferros, envenenado com poeira e mau cheiro, e privado das coisas mais necessárias. "E durante este tempo", disse ele, "destes aos meus adversários todas as audiências que eles quiseram, e vos recusastes ouvir-me uma só hora que fosse". Então referiu-se envergonhado, à sua retração, e aquela triste confissão por si um testemunho. "Confesso" disse ele, "e tremo quando penso nisso. Por medo do castigo do fogo, consenti vilmente e contra a minha consciência em condenar a doutrina de Wycliff e Huss. Retrato-me agora completamente deste ato pecaminoso, e estou resolvido a manter os dogmas destes homens até a morte, crendo que eles são a verdadeira e pura doutrina do Evangelho, assim como creio que as vidas desses santos foram irrepreensíveis".

A assembléia não tratou melhor esta nova vítima do que tinha tratado Huss, mas Jerônimo nunca perdeu a sua presença de espírito, nem se deu por vencido os clamores que faziam os seus adversários, nem quando o submeteram a ridículo. Lembrou-lhes que o seu caso não era único, e que outros mais dignos do que ele tinham sido acusados por testemunhas falsas, e condenados injustamente. José e Isaías, Daniel e João Batista, e até o seu próprio divino Mestre, tinham sido levados perante autoridades e sofreram injustamente às mãos de homens malvados. "Vós tendes resolvido condenar-me injustamente", exclamou ele, "mas depois da minha morte ficar-vos-á um remorso na consciência que nunca há de acabar. Apelo para o soberano juiz de toda a terra, em cuja presença haveis de comparecer para responderdes por este crime".

Uma tal linguagem era mais suficiente para promover a sua pronta condenação, mas ele tinha agora perdido todo o medo da morte. Quando aquele momento penoso chegou, a sua fisionomia radiante mostrou a sua boa vontade de sofrer; e dirigiu-se para o lugar do martírio cantando hinos de alegria. Nisto apareceu-se com o amigo que o tinha precedido, e esta semelhança não passou despercebida a um historiador católico-romano que depois foi papa com o nome Pio II: "Eles caminhavam para o suplício", disse esse escritor, "como se fossem para um banquete. Não proferiram uma única palavra que desse a perceber o mais pequeno temor. Cantavam hinos nas chamas, sem cessar, até o último suspiro".

E digno de menção o fato de ter sido o papa João XXIII mais tarde deposto pela sua malvadez, pelo mesmo concílio que ele convocara para a condenação destes nobres mártires. Foi este o único ato digno que o concílio praticou, não lhe cabendo, ainda assim, elogios por isso, visto que este passo foi dado por motivo de interesse.


Guerra Civil na Boêmia

O martírio de Huss e Jerônimo, com que eles esperavam livrar a Europa das heresias de Wycliff, não só deixou nas suas consciências o peso de um duplo assassinato, como também, sob o ponto de vista de Roma, foi um engano fatal. Em lugar de esmagarem, por este meio, o que eles chamavam uma heresia corruptora e escandalosa, inflamaram o espírito do povo boêmio, e causaram uma guerra civil. Ainda mesmo antes da morte de Jerônimo, vários fidalgos e outras pessoas eminentes da Boêmia tinham, indignados, mandado um protesto ao Concílio de Constância no qual o acusaram de injustiça e crueldade, e diziam mais, que estavam decididos a sacrificar as suas vidas na defesa do Evangelho de Cristo e dos seus fiéis pregadores. Contudo este protesto foi queimado com desprezo pelos prelados reunidos e a indiferença insultante destes padres foi mais tarde manifestada pelo bárbaro assassinato da segunda vítima. Os editos de perseguição que se seguiram não podiam, de certo, servir para abrandar o espírito do povo, e quando no ano de 1419 um pregador hussita foi preso e queimado, sofrendo além disso as maiores crueldades, o povo, exasperado, correu às armas, e tendo à sua frente o camarista do rei, um fidalgo chamado Zisca, levou tudo adiante de si.

O imperador Sigismundo levantou contra eles um poderoso e bem organizado exército, que foi desbaratado como se fosse palha, diante dos malhos dos camponeses boêmios, que, na verdade, poucas outras armas tinham para ferir as suas batalhas. O cardeal Juliano, legado do papa, presenciou algumas destas batalhas, e ficou admirado quando viu a flor do exército do imperador – príncipes conhecidos pela sua bravura, e veteranos de fama européia – retirando-se em desordem diante das armas grosseiras de um punhado de camponeses – ainda mais – algumas vezes, fugindo até quando ninguém os perseguia, possuídos de um pânico inexplicável. Numa destas ocasiões, o cardeal, derramando abundantes lágrimas, exclamou: "Ah! Não é o inimigo, são os nossos pecados que nos fazem fugir!". Vários escritores papistas confessaram que não podiam explicar o maravilhoso êxito destes guerreiros cristãos, e um deles afirmou que os boêmios mostraram ser um povo valente, porque, apesar de o imperador Sigismundo conduzir quase a metade da Europa contra eles, não foi capaz de vencê-los. O reformador Melanchton do século seguinte, atribuiu estas vitórias a poderes milagrosos, e acreditou que os anjos de Deus acompanhavam os vitoriosos nas suas expedições, e derrotava os seus inimigos.


Divergências entre os Hussitas

Por morte de Zisca no ano de 1424, empregaram-se esforços para pôr termo à guerra, sendo os boêmios convidados a apresentar o seu "utimatum" perante uma convocação em Basiléia. Mas os hussistas não eram todos favoráveis a estes tratados, e como já tinha havido algumas grandes divergências de opinião entre eles, dividiram-se em dois partidos. Um deles, que só pedia que na comunhão se desse tanto o cálix como o pão a todos por igual, foi facilmente atraído de novo para o seio da igreja, tendo o papa prometido consentir no ponto em que os dissidentes insistiam apesar de, logo que o pôde fazer com segurança, violar a sua promessa. Foi dado a este partido o nome de Calixtinos. O outro partido, que seguiu a doutrina de Huss, tal qual era, recusou assinar o pacto e ficou assim exposto às perseguições dos seus antigos amigos além de Roma. Eram conhecidos pelo nome de "taboretes", porque se reuniam para o culto numa certa colina, a que chamavam Monte Tabor. No entanto, o conhecimento cada vez maior que os taboretes tinham da Palavra de Deus, tinha-lhes ensinado que o apelo para as armas carnais era contrário à expressa idéia e vontade de Deus; e quando a perseguição principiou de novo, em lugar de servirem dos seus malhos e enxadas, apelaram somente para "a espada do Espírito, que é a Palavra de Deus" (Ef 6.17).


Os Irmãos Reunidos

Por fim, a intensidade dos seus sofrimentos comoveu o arcebispo de Praga, que anteriormente se tinha tornado saliente entre os calixtinos, e pela sua influência foram levados para os territórios de Lititz, nos confins de Moravia e Silésia, onde, por algum tempo, foram livres de perseguições, podendo até fundar uma colônia. Alguns dos seus irmãos que estavam entre os calixtinos reuniram-se a eles, juntamente com vários cidadãos de Praga, e não poucos fidalgos; para comemorar esta junção tomaram o nome de "Unitas Fratrum", ou Irmãos Reunidos . Isto teve lugar no ano de 1451.
Contudo, tinham estado instalados nos seus novos bairros apenas uns doze meses quando foram de novo incomodados pelos malévolos agentes de Roma. O pretexto para esta nova perseguição foi uma acusação, sem base, de sedição, e os irmãos morávios tiveram de por em prática toda a sua paciência e toda a sua fé. A crueldade dos inquisidores era digna de seu ofício, e centenas de morávios inocentes, que nem resistência faziam, foram por ordem deles agarrados e lançados na cadeia. Uns deixaram que morressem de fome; outros foram torturados; outros mutilados, e outros queimados; e alguns que podiam fugir foram obrigados a refugiar-se nas cavernas e nos bosques, onde se alimentavam da caça que matavam e dos frutos silvestres que os arbustos davam; e quando deixavam os seus esconderijos, iam uns atrás dos outros em fila, pisando as pegadas uns dos outros, levando o último um ramo com que apagava os sinais dos pés, e foi assim que evitavam ser apanhados. Quando chegava a noite acendiam o lume, não ousando fazê-lo de dia, com medo que o fumo, elevando-se, os atraiçoasse, e ao trêmulo clarão daquelas fogueiras tinham lugar as suas piedosas reuniões, onde juntos liam as suas Bíblias. No ano 1470 terminaram a tradução da Bíblia para a língua boêmia, e não tardou muito tempo que fossem impressas várias edições. Assim, pois, uma coisa ia ajudando a outra, e, a despeito dos esforços que Roma fazia para perturbar e fazer oposição, ia-se preparando o terreno para a reforma que se aproximava.


Há ainda três nomes que sobressaíram nesse tempo e a que não devemos deixar de nos referir, ainda que em poucas palavras.

Jerônimo Savonarola

O primeiro destes foi Jerônimo Savonarola, um monge dominicano, filho de um médico em Ferrara. Ainda muito novo, julgou ter recebido visões celestiais; isso levou-o a entrar no convento de Bolônia, onde seus jejuns e penitências atraíram a atenção dos seus superiores. Foi mais tarde removido para o convento de S. Marcos em Florença, e ali chegou à dignidade de prior, fazendo, então, toda a diligência para restituir, tanto quanto possível, a primitiva simplicidade da vida monacal. Mas o que chamou a atenção de Roma a ele foi a sua fama como pregador reformador e, fora do seu convento, as suas inexoráveis denúncias contra o papa; os seus ataques aos vícios do clero; as suas tristes lamentações pelo torpor das coisas espirituais naquele tempo. O papa diligenciou fazer calar o grande pregador, oferecendo-lhe um barrete de cardeal, mas isso não tinha atrativo para Savonarola. Recebeu o oferecimento com indignação, e declarou que o único barrete encarnado que ele ambicionava era aquele que fosse tinto com o sangue martírio.


Por fim foi apanhado e metido na prisão. Ali aproveitou o seu tempo a meditar e orar, e escreveu uma meditação espiritual sobre o Salmo 31, na qual descrevia as lutas íntimas do homem convertido. Depois de ser cruelmente torturado, por ordem da Inquisição, foi assinada a ordem da sua condenação por esse mesmo papa que queria fazê-lo cardeal, e foi finalmente queimado no ano 1499.

João de Wessália
O segundo foi João de Wessália, um notável doutor de teologia de Erfurt. Este homem piedoso foi, na sua velhice, muito apoquentado pelos inquisidores papistas que meteram seu frágil corpo entre ferros, sujeitando-o a muitas indignidades. Ele ensinou que a salvação se obtinha pela graça, e que as peregrinações, os jejuns, a extrema unção etc., de nada aproveitavam à alma, e que a Palavra de Deus é a única autoridade em materiais de fé. Conseguiram afinal que ele retratasse de alguma das suas opiniões, mas isso não teve por efeito diminuir o ressentimento dos seus inimigos, visto que ainda o conservaram na prisão mais alguns meses, vindo a morte libertá-lo misericordiosamente no ano de 1479.


João Wesselus

O terceiro foi João Wesselus, ou Wessel, amigo de João de Wessália, com quem o confundiram algumas vezes. Nasceu em Groningen, na Holanda, pouco mais ou menos no ano 1419, e foi célebre na Europa. Apesar de ser incontestavelmente o maior teólogo da sua época, nunca tomou ordens, não estando por isso associado com qualquer corpo eclesiástico. Era muito vulgar naqueles tempos adotar a profissão clerical para evitar perseguições, e isto explica a observação que ele fez uma vez, afirmando que não tinha medo do cadafalso, e portanto não precisava de tonsura. Quando o seu amigo Rovere, geral dos franciscanos, foi elevado ao trono papal, perguntou-lhe se tinha algum pedido a fazer-lhe, ao que respondeu: "Sim, peço-lhe que me dê da livraria do Vaticano uma Bíblia em grego e outra em hebraico" – "Ser-lhe-ão dadas", respondeu o papa, - "Mas por que não pede antes um bispado ou coisa semelhante?" – "Por uma razão muito simples", retorquiu Wessel, "porque não quero nenhuma dessas coisas".

Tal era o espírito do homem que tinha de levar avante o testemunho de Deus, testemunho que temos traçado desde a era dos apóstolos. Parece que não sofreu nenhuma perseguição durante a sua vida, apesar de todo o teor do seu ensino ser contrário ao procedimento e às máximas de Roma. Lutero, no século seguinte, manifestou a sua surpresa de que os escritos de Wessel fossem tão pouco conhecidos, e falou dele como sendo um homem de admirável inteligência e espírito invulgar, evidentemente ensinado por Deus. "Se eu tivesse lido as suas obras há mais tempo", disse Lutero, "os nossos inimigos poderiam supor que eu tinha aprendido tudo com Wesselus, tal é a perfeita coincidência nas nossas opiniões... Agora não posso duvidar de que tenho razão nos pontos que tenho indicado, vendo um tão grande acordo nos sentimentos, e até quase as mesmas palavras empregadas por aquele grande homem, que viveu numa outra época, num país distante, e em circunstâncias muito diferentes das minhas".
Wesselus morreu cheio de honra aos setenta anos de idade, confessando no seu último suspiro a imensa satisfação da sua alma, porque "tudo que ele conhecia era Jesus Cristo crucificado".

Isto teve lugar no ano de 1489. Lutero era então uma criança de seis anos. Assim pois o testemunho foi ligado ao período da grande Reforma, e a cadeia de testemunhas tinha sido até ali conservada sem interrupção



A REFORMA PROTESTANTE



Lutero e a Reforma Alemã (1483 - 1522)


Desde há muito, a doutrina da justificação pela fé tinha sido perdida de vista na igreja, e foi este um dos fatos pelos quais a Reforma se tornou uma necessidade. Logo que o poder desta verdade enfraqueceu nas almas dos fiéis, foi introduzida a doutrina de salvação pelas obras, e substituíram por penitências e mortificações exteriores aquele arrependimento para com Deus e a santificação íntima. Estes erros começaram logo no tempo de Tertuliano e aumentaram à proporção que iam passando os anos, até que por fim, a superstição do povo não se podia levar mais adiante, e as trevas da Idade Média foram a origem dos flagelantes

As Indulgências

Venda de Indulgências
Os flagelantes, uma seita de fanáticos, foi instituída no século treze, e espalhou-se por uma grande parte da Europa. Andavam pelas ruas meio-nus, flagelando-se duas vezes por dia com chicotes. A severidade destes castigos, que imaginavam servir de expiação, não só dos seus pecados, como também dos pecados dos outros, excitou a princípio a perseguição, mas por fim despertou a simpatia do povo, que começou a virar as costas aos padres desregrados e a confessar os seus pecados e tristezas aos flagelantes. O pensamento dominante dos padres foi então ver como poderiam conservar a influência do domínio usurpado, "e portanto", disse d'Aubigné, "inventaram um negócio novo a que chamaram indulgências". Em troca de uma quantia mais ou menos avultada, conforme a classe a que o comprador pertencia, ficava este livre de uma peregrinação, de um jejum, ou de outra qualquer penitência; e assim começou esse detestável negócio.


O papa percebeu logo que as vantagens que podiam resultar de um sistema tão lucrativo e, em tempo oportuno, Clemente VII instituiu o extraordinário dogma de que a crença nas indulgências era um artigo de fé.

Estas indulgências de Roma não diziam respeito só aos vivos; iam além da tumba, e as almas que gemiam no Purgatório também se diziam que eram salvas por meio delas.
A venda de indulgências era necessariamente um grande incentivo ao pecado, e, na verdade, os ignorantes nada podiam ver nesta doutrina senão uma licença absoluta para praticarem o mal, enquanto que os padres, que aproveitaram cada vez mais tais idéias erradas, não tinham pressa em esclarecer o povo.


Tal era condição da igreja no começo do século dezesseis: tão corrupta nas suas ações, que era impossível continuassem as coisas assim por muito tempo como estavam.
Não obstante isso, Roma vangloriava-se e estava confiante, porque tinha poucos inimigos declarados que a incomodassem. Os hussitas tinham sido, uns espalhados pela perseguição, outros atraídos de novo para o grêmio da igreja; e o testemunho dos cristãos valdenses tinha sido quase suprimido. Mais ainda: havia um sentimento de insatisfação nos corações dos homens de todas as classes que nem o fumo do fogo dos mártires sacrificados por Roma podia apagar, nem as promessas enganosas dos padres aliviar. Reis e fidalgos, cidadãos e camponeses, teólogos e homens de letras, políticos e soldados tinham todos as suas razões de queixa, e estavam moralmente preparados para a obra de Reforma. A Europa tinha despertado do longo pesadelo da Idade Média, e estava agora olhando, ainda que com olhos de sono, através do nevoeiro de uma longa superstição, à procura da luz. Era inevitável uma mudança importante, uma reação; mais ainda, uma revolução; e apenas era necessário achar um chefe. O espírito dos homens estava pronto para a revolução; e só necessitava de um que agüentasse o peso da luta para os guiar, aconselhar e dirigir.


Deus viu o que era preciso e enviou Martinho Lutero à Igreja na Europa.

Não faltaram líderes para seções e grupos particulares, mas Lutero havia de ser o chefe. Os príncipes e fidalgos, de há muito desgostosos com a usurpação sucessiva dos seus domínios pelos papas, encontraram no eleitor Frederico de Hanover um representante dedicado, embora tímido; os políticos e homens de letras, oprimidos pelas leis canônicas acharam um intérprete dos seus pesares em Ulrico Von Hutten, mas todos, desde o rei até o mais humilde, encontraram o defensor das suas liberdades no grande monge Agostinho, Martinho Lutero.

Martinho Lutero

Martinho Lutero
O reformador era filho de pais humildes, nasceu em Eisleben na província de Mansfeld, no dia 10 de Novembro de 1483. "Eu sou filho de camponeses", dizia ele mais tarde, "meu pai, meu avô, e todos os meus antepassados eram camponeses". Foi de seus pais que ele herdou aquela rude simplicidade e temperamento franco e alegre, peculiar do camponês da Turíngia. A educação que recebeu em casa era reta e religiosa, e o tratamento que recebeu na escola era áspero em extremo, mas tudo isso foi necessário para preparar o futuro reformador para a sua grande e perigosa obra.
Aos quatorze anos de idade foi mandado para a escola franciscana em Magdeburgo onde aumentaram muito os seus sofrimentos. Conta ele que quase o matavam de fome, e muitas vezes era obrigado a cantar nas cidades e vilas próximas para angariar pão. Algum tempo depois mandaram-no para Eisenach, onde tinha parentes, mas estes deram-lhe pouco ou nenhum alívio. Teve de continuar a vaguear, esfomeado e miserável, pelas ruas cantando hinos e pedindo "panem propter Deum" às portas dos desconhecidos, agradecendo muito até as migalhas que lhe eram às vezes lançadas. Mas por fim chegou o alívio. Aquilo que os parentes tinham negado, deram-lhe os estranhos; e uma tarde depois de ter pedido a diversas portas sem resultado, chegou a uma onde não foi repelido. Os cristãos hão de sempre recordar com afeto e gratidão o nome Úrsula Cotta, porque foi ela que abriu as suas portas ao pobre rapaz esfomeado e lhe deu não só o sustento, mas um lar e amor de uma mãe. Lutero teve ocasião, mais tarde, de retribuir a sua bondade, recebendo também o filho de Úrsula na sua própria casa em Wittenberg.

Lutero na Universidade


Quando tinha dezoito anos, foi, por ordem de seu pai, para a Universidade de Erfurt estudar direito, e foi ali que seu espírito tomou uma série orientação pela morte repentina de seu condiscípulo e amigo íntimo Aleixo. Isto teve lugar por ocasião dumas férias pequenas, quando ambos passeavam juntos. Ao passarem por Thuringen-evald foram surpreendidos por uma grande tempestade, e o leviano Aleixo foi atingido por uma faísca elétrica. Caindo de joelhos, com o impulso no momento, Lutero fez um voto de se consagrar ao serviço de Deus, se Ele o poupasse na ocasião.

Desde então mudou completamente. Levou bastante tempo antes que lhe voltasse o amor pelo estudo, e passava dias e dias vagueando pensativo pela biblioteca da Universidade, como alguém que não pudesse achar descanso. Por fim veio-lhe às mãos uma Bíblia em latim, e tendo um perfeito conhecimento daquela língua, começou a ler o livro. Era esta a primeira vez que tinha olhado para aquele livro sagrado, e a sua surpresa foi grande. Nele encontrou uma sabedoria mais profunda do que imaginara, pérolas preciosas de verdade que nenhum missal ou breviário podia ensinar, e inclinou-se sobre seu novo tesouro num arrebatamento da alma. A proporção que lia ficava mais persuadido da autoridade divina do livro sagrado, e ia-se possuindo de uma convicção profunda da sua própria maldade. Até ali as palavras inspiradas tinham para ele um sentido misterioso e estava como alguém que procurasse o seu caminho às apalpadelas em plena luz do sol. Perplexo e trêmulo, fechou o livro, e, após, fez uma lista dos seus pecados, que o encheu de um vago receio. Nunca tinha, até então, pensado seriamente neles; nunca os tinha considerado sob um ponto de vista tão negro. Uma tão medonha série tinha-lhe, por suposto, fechado as portas do Céu para sempre; não podia haver esperança para um homem tão vil como ele. Então Lutero lembrou-se de repente de seu voto, e ergueu-se com um novo propósito no coração: Sim; ainda restava uma esperança – deixaria a Universidade e far-se-ia monge.

Lutero Num Mosteiro

Vamos agora encontrá-lo no mosteiro dos frades agostinhos, em Erfurt, e como tudo está mudado! Quando o deixamos era ele um inteligente estudante de Direito, um bacharel de artes, e o ídolo da Universidade; agora é um monge, e o mais íntimo entre eles. Aquele que outrora tinha pronunciado discursos e tomado parte em discussões sábias era agora o criado da sua ordem, e tinha de limpar as celas, dar corda ao relógio, e varrer a capela do mosteiro! Contudo Lutero sujeitava-se a estes trabalhos penosos, inerentes à sua nova posição, sem se queixar; a luta moral porque estava passando quase lhe fazia esquecer a degradação. Muitas vezes, quando sentia a sua alma apoquentada, deixava seu trabalho para ir à capela do mosteiro, onde estava guardada a Bíblia, e ali procurava o alimento espiritual de que carecia. E era só nestas ocasiões que ele podia estudar a Palavra de Deus.

Mais tarde, porém, foi nomeado para a cadeira de teologia e filosofia de Wittenberg, que se achava vaga. A nomeação foi feita por Staupitz, vigário geral da ordem Agostinha de Saxônia, por conselho de Frederico, o Sábio, Eleitor de Hanover. Lutero era agora até um certo ponto senhor do seu tempo, e podia dedicar-se mais ao estudo da Bíblia. A solidão de sua cela era muito conveniente para esse fim, e ele estudava com um zelo pouco vulgar. Fazia esforços extraordinários para reformar o seu modo de viver, e para expiar o passado por meio de orações e penitências, e foram muitos os votos que ele fez para se abster de pecado, mas estes esforços nunca os satisfazem, e quebrava sempre os seus votos. "É em vão", dizia Lutero tristemente a Staupitz, "que eu faço tantas promessas a Deus: o pecado é sempre o mais forte". Staupitz discutia brandamente com ele, e falava-lhe do amor de Deus e que Deus não estava zangado com ele, como Lutero supunha; mas o monge continuava desconsolado. "Como posso eu ousar crer na graça de Deus", dizia ele, "se é certo que ainda não se operou em mim uma conversão? Preciso necessariamente mudar de vida para ser aceito por Ele".

A sua ansiedade tornou-se mais profunda do que nunca, e os esforços para apaziguar a justiça divina continuavam com um zelo incansável. "Eu era na realidade um monge piedoso", escreveu anos depois, "seguia os preceitos da minha ordem com mais rigor do que posso exprimir. Se fosse possível a um monge obter o Céu por suas obras monacais eu era, certamente, um dos que tinha direito a isso. Todos os frades que me conheceram podem ser testemunhas. Se tivesse continuado por muito mais tempo as minhas penitências ter-me-iam levado à morte, a força de vigílias, orações, leituras e outros trabalhos".

O monge tinha ainda, de aprender a significação destas palavras: "Porque pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus. Não vem das obras, para que ninguém se glorie" (Ef. 2.6,9).

As repetidas conversações com Staupitz davam-lhe uma certa esperança, e de vez em quando sentia um estremecimento de alegria, e o seu coração ganhava confiança. Mas a lembrança dos seus pecados tornava a voltar e a sua alma perturbada tremia de horror ao pensar no julgamento a que tinha de comparecer. "Oh! Os meus pecados! Os meus pecados!" exclamou ele um dia diante do vigário geral; e quando Staupitz lhe falou em Cristo como o Salvador do pecado e da impureza, as suas palavras pareciam ser um mistério impenetrável para o pobre monge.

Por fim a sua saúde ressentiu-se de tal maneira por tão repetidas vigílias e mortificações que chegou a estar às portas da morte. E então aos seus outros receios juntava-se mais o terror do seu próximo fim, e o medo do julgamento futuro mergulhava-o num abismo ainda mais profundo.

Que lhe aconteceria se morresse sem estar salvo? Que aconteceria se morresse nos seus pecados? Ainda não tinha uma certeza completa de misericórdia divina; aqueles pecados ainda não tinham sido postos de parte, e ele receava levar a sepultura o peso deles.

Nesta triste condição foi um dia visitado na sua cela por um monge piedoso, que lhe disse algumas palavras de consolação. Lutero, vencido pela bondade dessas palavras, abriu o seu coração ao velho monge, mal imaginando o que havia de resultar daí. O monge não podia segui-lo em todas as suas dúvidas, mas repetiu-lhe ao ouvido uma frase do Credo dos Apóstolos que muitas vezes o tinha consolado: “Creio na remissão dos pecados”. Foi esta mensagem de Deus para a alma de Lutero, e agarrou-se àquelas palavras com uma energia quase desesperada. "Eu creio", repetia ele para consigo, "eu creio na remissão dos pecados".
Ouvindo-o repetir essas palavras, o monge lembrou-lhe que a fé deve ser pessoal e não uma fé geral, que não era bastante crer meramente no perdão dos pecados de Davi, ou dos pecados de Pedro, mas sim do perdão dos seus próprios pecados. Todas estas palavras soavam como música celestial aos ouvidos do trêmulo ouvinte, e quando o digno ancião acrescentou, "Atendei ao que diz S. Bernardo, e ao testemunho que o Espírito Santo produz no vosso coração que é este: Os teus pecados te são perdoados". A luz brotou naquele coração atribulado; e Lutero deu graças a Deus por essas palavras serem verdadeiras com respeito a ele mesmo.

Lutero Vai a Roma


Mas embora verdadeiramente convertido, Lutero ainda se conservava escravo de Roma; e foi só depois de ter feito uma visita à cidade papal que ele começou a descobrir a corrupção que ali existia, e a sentir-se abalado na sua obediência à igreja romana. Tornou-se necessária esta visita de caráter oficial em conseqüência de uma questão que se levantou entre o vigário geral e sete dos conventos, e no tempo o competente Lutero pôs-se a caminho. Quando avistou Roma prostrou-se, e exclamou: "Santa Roma eu vos presto a minha homenagem", considerando-a como o campo de ação de S. Pedro e S. Paulo.

Mas quando entrou na cidade abriram-se-lhe os olhos. Começou a compreender que o poço de corrupção era realmente a metrópole do catolicismo e durante algum tempo ficou atordoado. Por onde quer que se dirigisse encontrava sempre o mesmo mal, e entre os habitantes da cidade, os que em mais alta voz proferiam blasfêmia ou mais se distinguiam pela sua infidelidade eram os próprios padres. Enquanto um dizia a missa num altar, diziam-se sete no altar próximo. Também ouviu da boca dos próprios monges uma história que horrorizou e o perturbou. Contaram eles, no meio de gargalhadas, que quando diziam missa, em lugar de pronunciar as palavras sacramentais sobre o pão e o vinho com que suponha transformá-los no corpo e sangue de Cristo, freqüentemente repetiam estas palavras: "Panis es, et Panis manebis; vinum es, et vinum manebis" – Pão és, e pão ficarás; vinho és, e vinho ficarás.
O que fica dito apenas mostra a grande impiedade que Lutero encontrou em Roma durante a sua curta permanência ali; podíamos, se fosse necessário, mencionar muito mais. Foi pois com a alma entristecida pelo que ali tinha visto que Lutero saiu da cidade de Roma e voltou para a sua terra natal.


Lutero Volta para Winttenberg
Quando ali chcou, formou-se em teologia, e os seus sermões começaram a atrair a atenção na igreja da ordem Agostinha em Wittenberg, onde se reuniam grandes multidões para o ouvirem. A sua magnífica exposição, e sua eloqüência, a sua admirável memória, e sobretudo a evidente força das suas convicções, cativavam todos os que o ouviam, e o Dr. Martinho Lutero tornou-se o assunto das conversações entre as pessoas ilustradas. Mas o que o tornou mais geralmente notável foi a sua contenda com João Tetzel, o monge dominicano de Leipzig. Tetzel tinha vindo vender indulgências no próprio lugar onde Lutero estava cumprindo com os seus deveres de confessor do povo de Wittenberg. Tornava-se, pois, inevitável uma questão entre eles.

Discurso de Tetzel

Subindo ao púlpito, perto do qual estava colocada uma grande cruz vermelha encimada pelas armas papais, Tetzel começou o seu discurso. Falava alto e animadamente, e fazia do Purgatório uma descrição medonha que fascinava o auditório, despertando em todos a maior solicitude pelas almas dos seus amigos já falecidos. Falou das grandes vantagens da comodidade que ele proporcionava aos seus ouvintes, pois não havia pecado algum que tivessem cometido que se não pudesse lavar com uma indulgência. Ainda mais, estas indulgências eram eficazes não somente com respeito aos pecados presentes, mas também sobre os pecados passados e futuros. E ainda os pecados que os seus ouvintes tivessem o desejo de cometer podiam ser perdoados com antecedência pelas suas cartas de absolvição: “Eu não trocaria o meu privilégio”, disse o monge loquaz, "pelo de S. Pedro no Céu, porque eu tenho salvo mais almas com as minhas indulgências do que o apóstolo com os seus discursos".
Estas observações eram escutadas com uma atenção extraordinária, mais os seus apelos a favor dos mortos produziram ainda mais resultado. "Padres, nobres, mercadores, esposas, moços, moças", exclamou ele, "ouçam a vossos pais e amigos já mortos, gritando-vos do abismo profundo – Nós estamos sofrendo um martírio horrível! Uma pequena esmola nos poderia salvar; vós podeis dá-la, e contudo não quereis fazer! – Ouçam estes gritos, e saibam que logo que soar uma moeda no fundo da caixa a alma solta-se do Purgatório e dirige-se em liberdade para o Céu... Como sois surdos e desleixados! Com uma insignificante quantia podeis livrar o vosso pai do Purgatório, e apesar disso sois tão ingratos que não comprais a sua liberdade! No dia do juízo eu serei justificado, mas vós sereis castigados tanto mais severamente por terdes desprezado tão grande salvação".
Concluído o discurso, os fiéis chegaram-se às pressas para onde se achava o vendedor de indulgencias, e ali fizeram as suas compras. A maior parte deles ficaram provavelmente, muito satisfeitos com o seu negócio, e, quando no dia seguinte se foram confessar, foi sem idéia nenhuma de se emendarem dos seus pecados. Não tinham eles, porventura, consigo um documento assinado pelo irmão João Tetzel, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo, que lhes restituía a inocência e pureza que tinham na hora do seu batismo, assim como também os declarava isentos das conseqüências de futuros pecados até o dia da sua morte?


Oposição de Lutero a Tetzel


Porém, o padre confessor Martinho Lutero não ligava importância nenhuma ao irmão Tetzel, nem aos seus documentos. O seu dever era dizer ao povo que Deus odiava o pecado; que o Inferno e não o Céu é o destino dos maus, e que, a não ser que tivessem um verdadeiro arrependimento para com Deus, ficariam perdidos para sempre. "Se não abandonardes vossos pecados", dizia ele, "perecereis todos igualmente".

Era em vão que Tetzel se encolerizava e o povo se opunha a estas sábias declarações. Lutero mantinha-se firme: "Acautelem-se", avisava ele, "e não dêem crédito aos clamores desses vendedores de indulgências! Há melhores coisas em que pensar do que na compra das tais licenças, que eles vendem pelos preços mais vis". No púlpito não era menos enfático. Em linguagem muito clara aconselhava o povo a que não continuasse com aquele tráfico infame.


O seu sermão deixou o auditório muito admirado e tornou-se o assunto da geral discussão em Wittenberg; e antes de ter passado a sensação que ele causou apareceram as suas famosas Teses – certas proposições sobre as verdades fundamentais do Cristianismo, que Lutero escreveu e colocou na porta da sua igreja. Nenhum dos amigos de Lutero, nem mesmo os mais íntimos, sabia que ele as havia escrito; e o povo de Wittenberg ficou uma manhã espantado vendo-as colocadas na porta da igreja. O erro de tão horrível tráfico era ali claramente exposto; e logo todos começaram a sentir que havia falado uma voz como ainda se não tinha ouvido outra na Europa. Uma cópia das Teses caiu nas mãos de Tetzel, e o frade dominicano ficou furioso. Chegou a valer-se de imprecações. Escrever também algumas teses e em seguida queimar as de seu adversário foi simplesmente acrescentar mais fel ao seu próprio cálix, porque os estudantes de Wittenberg tomaram o partido do seu professor e responderam a isto queimando oitocentas cópias das teses do dominicano.
No entanto as Teses de Lutero passavam de mão em mão, e espalhou-se rapidamente a notícia do ato arrojado do reformador. O papa soube logo desse fato, e citou o indomável monge a comparecer em Roma, mas por conselho do príncipe de Saxônia – um amigo verdadeiro de Lutero – a citação foi ignorada. O Príncipe lembrava-se da sorte de João Huss, e suspeitava naturalmente das intenções de Leão X.


O Papa Denuncia Lutero
Lutero foi pois declarado herege, e o papa, em conseqüência disso, mandou publicar uma bula de excomunhão contra ele. Durante toda esta agitação o doutor tinha avançado com firmeza no conhecimento da verdade, e quando recebeu a excomunhão já se tinha de tal maneira desembaraçado das cadeias de Roma que estava pronto para dar mais um passo, como reformador, e declarou publicamente que o para era o Anticristo! Sem dúvida, essa declaração era arrojada, mas foi seguida de um ato igualmente arrojado. Rodeado pelos professores e estudantes da Universidade e vários membros da municipalidade, Lutero, na praça pública, queimou a bula do papa!

Roma logo teve conhecimento disso e tendo um sentimento confuso do perigo que corria, declarou que o monge havia de morrer. Carlos V, um jovem príncipe que dava muitas esperanças, estava então no trono da Alemanha. Era católico romano, mas de modo algum se sujeitou incondicionalmente à autoridade da igreja. Não obstante isso, o anúncio Aleander, então legado papal na Alemanha, induziu-o a tomar algumas medidas com respeito a Lutero. Roma tinha as forças exaustas, e se não tivesse do seu lado o poder temporal tudo estava perdido. Estava para se reunir um congresso em Worms, para felicitar o jovem imperador pelo seu acesso ao trono e para fazer os preparativos para o contrato da eleição, e era essa a ocasião para dar uma palavra decisiva e esmagar o incômodo herege. Era este o pensamento geral e o papa juntou-se a ele, e exprimiu o desejo de que Aleander estivesse presente ao congresso, com o fim de ordenar o cumprimento da sua bula.

Era aquele uma ocasião própria para operar. O perigo ia-se espalhando e o soberano pontífice da cristandade tinha começado a compreender a força e a coragem do seu adversário. O espírito da Europa tinha despertado e não havia meio de o adormecer de novo se não fizessem calar o audacioso monge. Retirar-se da luta era simplesmente inútil, porque a voz de Wittenberg já tinha soado por toda a Europa, e todas estavam esperando ansiosamente ouvi-la de novo. O serviço exclusivo de três imprensas não tinha podido suprir ao povo os seus escritos com bastante brevidade; e a sala de leitura da Universidade e a igreja dos agostinhos não eram suficientemente grandes para conter as multidões que ali se reuniam para ouvirem Lutero pregar. Príncipes, camponeses, poetas e homens de estado; professores, sábios e estudantes de teologia, todos igualmente tinham despertado; e todas as classes e todas as nações dirigiam para Lutero e sua suprema atenção. Um monge solitário em Wittenberg fizera soar a trombeta de desafio, e a Europa inteira estava esperando com grande interesse o resultado da próxima luta.
Ida de Lutero a Worms


Foi para Lutero um tempo de perigo aquele, mas a sua confiança em Deus era grande. Determinou ir a Worms responder às acusações que lhe eram feitas, fossem quais fossem os perigos; e quando o seu propósito foi conhecido encontrou mais uma vez um verdadeiro amigo no Príncipe da Saxônia. Este príncipe cristão obteve para ele um salvo-conduto do imperador e de todos os príncipes alemães por cujos estados ele tinha de passar; e com esta proteção Lutero estava pronto a partir. Os seus amigos estavam receosos e apreensivos, e procuraram ainda dissuadi-lo de empreender a jornada. Mas Lutero, confiando em Deus, não se importou com o pedido deles. "Se Jesus Cristo me ajudar", disse ele, "estou resolvido a nunca fugir do campo, nem abandonar a Palavra de Deus".
Chegando a Francfort, escreveu ao seu amigo Spalatim, que estava em Worms, para arranjar-lhe um quarto; e na sua carta lê-se o seguinte período característico: "Ouvi dizer que Carlos publicou um edito com o fim de me aterrorizar. Mas Cristo vive; e havemos de entrar em Worms ainda que as portas do Inferno, ou todos os poderes das trevas se opunham".
A sua entrada naquela cidade no dia 16 de Abril de 1521 celebrou-se com uma ovação pública; e chegaram-lhe aos ouvidos muitas palavras piedosas e animadoras, e muito povo o abençoava quando ele atravessava as ruas para o seu alojamento. No dia seguinte apareceu o marechal do império para o conduzir ao Congresso; e quando o monge se dirigia por entre a multidão para a sala do concílio foi saudado com palavras amigas por vários cavaleiros e fidalgos que se achavam ali presentes.


Lutero no Concílio

Ao entrar na sala do concílio o reformador ficou um tanto assombrado pelo espetáculo pouco vulgar que se lhe apresentava. Logo defronte dele sentava-se, vestido de púrpura e arminho, Carlos V rei de Espanha e imperador da Alemanha, e ao lado do trono estava seu irmão, o arquiduque Fernando. A conveniente distancia deles estavam colocados príncipes do império, duques, margraves, arcebispos, bispos, prelados, embaixadores, deputados, condes, barões e outros. Um tal espetáculo era bastante para perturbar o espírito do monge solitário que tinha passado a maior parte da sua vida na solidão na sua casa de província, e na cela do mosteiro; mas havia alguém que estava do lado dele, que era mais suficiente para protegê-lo. Alguém que tinha dito a Ezequiel nos tempos passados: "Não os temas, nem temas as suas palavras; ainda que sejam sarças e espinhos para contigo, e tu habites com escorpiões, não temas as suas palavras, nem te assustes com os seus rostos!" (Ez 2.6). Era nele que Lutero confiava.

Os trabalhos daquele dia foram começados pelo chanceler de Treves, um amigo de Aleander. No meio de um solene silêncio levantou-se do seu lugar e dirigiu a Lutero as seguintes perguntas: “Em primeiro lugar, queremos saber se estes livros” – e apontou para as obras de Lutero que estavam sobre a mesa – "foram escrito por vós. Em segundo lugar, se estais pronto a retratar-vos do que escrevestes nestes livros, ou se persistis nas opiniões que neles expusestes". Depois de ter trocado algumas palavras com o seu advogado, Lutero deu uma resposta afirmativa à primeira pergunta, mas pediu algum tempo para considerar a segunda. O seu pedido foi satisfeito e assim combinaram dar-lhe até ao dia seguinte para pensar no assunto
Aquele espaço de tempo, exceto uns poucos momentos dedicados aos seus amigos, foi empregado por Lutero em fervente oração a Deus, e assim animado apresentou-se pela segunda vez perante o tribunal dos homens, mas esta vez forte e ousado; e quando o chanceler lhe fez de novo a pergunta ele respondeu-lhe com tanta facilidade que arrancou exclamações de admiração dos seus amigos, e confundiu os seus inimigos. As suas censuras a todo o sistema do papismo foram fortes e incontestáveis.


Lutero terminou o seu discurso com palavras enérgicas de aviso ao imperador Carlos, e pediu-lhe a proteção que a malícia dos seus inimigos tornava necessária. Sendo instado para que desse uma resposta mais explícita à pergunta do chanceler, respondeu prontamente: "Visto que vossa majestade e vós poderosos senhores me exigem uma resposta clara, simples e precisa, dar-vo-la-ei, e essa resposta é a seguinte – não posso submeter a minha fé nem ao papa, nem aos concílios, porque é claro como o dia que eles muitas vezes tem caído em erro, até nas mais palpáveis contradições, com eles próprios. Se, portanto, não me convencerdes pelo testemunho das Escrituras, se não me persuadirdes pelos próprios textos que tenho citado, libertando assim a minha consciência por meio da Palavra de Deus, eu não posso nem quero retratar-me, porque não é seguro para um cristão falar contra a sua consciência". Em seguida, olhando em volta daquela assembléia, no meio da qual se conservava de pé, e que tinha bastante poder para o condenar, disse – "Tenho dito... aqui estou. Não posso proceder de outro modo... Deus me ajude! Amém".
Estavam agora justificados os receios dos amigos de Lutero, de que Roma havia de proceder traiçoeiramente na questão do seu salvo-conduto; e se o imperador tivesse sido como Sigismundo tudo naquele dia teria acabado para o reformador.

Mas os esforços traiçoeiros dos papistas em promover a violação do seu salvo-conduto não acharam apoio em Carlos, e a cada nova instância dos traidores ele respondeu resolutamente: "Ainda que a boa fé tivesse desaparecido da superfície da terra devia sempre encontrar um refúgio na corte dos reis". Contudo o imperador consentiu em que se publicasse um edito de desterro; mas isso satisfez tão pouco às exigências de Roma que eles voltaram ao seu extremo e desesperado recurso o assassinato. Fizeram-se combinações para assassinar o reformador quando ele voltasse para a Saxônia, mas o seu bom amigo, o príncipe, foi avisado da conspiração a tempo, e pôde frustrá-la. Quando Lutero voltava para casa, foi repentinamente rodeado num bosque por um bando de cavaleiros mascarados que, depois de mandarem embora as pessoas que o acompanhavam, conduziram-no alta noite ao antigo castelo de Wartburgo, perto de Eisnach, e ali o deixaram. Isto foi um estratagema do príncipe para pôr Lutero num lugar de segurança, e durante este tempo de descanso que lhe proporcionava a sua reclusão de Wartburgo, e completamente tranqüilo a respeito de decretos imperiais e bulas papais, o reformador escreveu algumas das suas mais soberbas obras de controvérsia, e começou a sua obra favorita, e talvez a maior de todas – a tradução da Bíblia para a língua alemã.



A REFORMA PROTESTANTE
Zwinglio e a Reforma Suíça (1481-1522)

Deixando Lutero em Wartburgo, notemos o que Deus tinha estado a fazer pelo seu povo em outro ponto da Europa por meio de outros instrumentos. É especialmente digno de menção que ao mesmo tempo em que se ia iniciando a Reforma na Alemanha, ia-se abalando cada vez mais o trono papal, em conseqüência de um despertamento religioso na Suíça, e o instrumento que Deus tinha escolhido para o cumprimento desta obra ali foi um padre de Roma chamado Úlrico Zwínglio. Se Lutero era filho de um mineiro, o reformador suíço não se podia gabar de ser de origem mais nobre, visto que seu pai era pastor, e guardava seu rebanho em Wildaus, no vale de Tockemburgo.
Úlrico Zwínglio
Zwínglio nos Estudos
Se não fosse o fato de o pai de Zwínglio destiná-lo a igreja, podia este ter morrido sem que seu nome jamais chegasse a nós. Mas tudo foi sabiamente ordenado por Deus, que tinha uma obra especial e importante para dar a fazer ao filho do pastor; e a sua mocidade foi regulada em conformidade com isso. Ainda não tinha dez anos de idade quando o mandaram para os estudos, sob a vigilância do seu tio, o deão de Wesen, e ali deu tais provas da sua inteligência, que seu parente tomou a responsabilidade da sua educação e mandou-o estudar sucessivamente em Basiléia, Berne, Viene, e de novo em Basiléia. Quando voltou para esta cidade teve a felicidade de ficar entregue aos cuidados do célebre Tomás Wittembach, homem que via claramente os erros de Roma, e ao mesmo tempo não era estranho à importante doutrina de justificação pela fé. O professor não escondia ao seu discípulo, nem os seus conhecimentos, nem as suas opiniões; e foi ali que Zwínglio ouviu pela primeira vez, com um sentimento de admiração, que "a morte de Cristo era o único resgate para a sua alma".

Deixando Basiléia após concluir o seu curso de teologia e depois de ter tomado o grau de bacharel em letras, foi escolhido para pastor na comunidade de Claris, onde ficou dez anos. Durante a sua permanência ali, dedicou-se a um estudo profundo das Escrituras e a examinar com atenção as doutrinas e práticas da igreja primitiva, como estavam descritas nos escritos dos antigos doutores, e isso mais o convenceu do estado de corrupção em que se achava a igreja professa; e começou a exprimir as suas opiniões sobre matérias eclesiásticas com uma clareza admirável.

No ano de 1516 estava ele em Einsiedeln, no cantão de Schwyz, tendo recebido um convite do governador do mosteiro dos Beneditinos para paroquiar a igreja de Nossa Senhora de Ermitagem, que era então um foco da idolatria e superstição de Roma. O que Lutero vira em Roma, viu Zwínglio em Einsiedeln; e o seu zelo na obra da Reforma foi estimulado pelas deploráveis descobertas que ali fez. Os seus trabalhos na Ermitagem foram abençoados, e o administrador Geroldseok e vários monges convertidos.

Depois de um ministério fiel de três anos em Einsiedeln, o reitor dos cônegos da igreja catedral de Zurique convidaram-no para ser seu pastor e pregador, sendo este convite aceito. Alguns, suspeitando das doutrinas reformadas, opunham-se à sua nomeação, mas a sua reputação era tão grande, e os seus modos tão atraente, que estava a maioria a seu favor, e foi devidamente eleito. Zurique tornou-se então a esfera central dos seus trabalhos, e foi ali que travou conhecimento com Oswaldo Myconius, que mais tarde escreveu a sua vida.
Zwínglio Pregando em Zurique
Quando ele pregava na catedral, reuniam-se milhares de pessoas para o ouvir; a sua mensagem era nova para os seus ouvintes, e expunha-a numa linguagem que todos podiam compreender. Diz-se que a energia e a novidade do seu estilo produziu impressões indescritíveis, e muitos foram os que obtiveram bênçãos eternas por meio do Evangelho puro e claro, enquanto que todos admiraram-se do que ouviam. Era grande a sua fé no poder da Palavra de Deus para converter as almas sem explicações humanas. Não quis restringir-se aos textos destinados às diferentes festividades do ano, que limitavam, sem necessidade, o conhecimento do povo com respeito ao livro sagrado e declarou que era sua intenção começar no evangelho de São Mateus e segui-lo capítulo por capítulo, sem os comentários dos homens. "No púlpito", diz Myconius, "não poupava ninguém. Nem papa, nem prelados, nem reis, nem duques, nem príncipes, nem senhores, nem pessoa alguma. Nunca tinham ouvido um homem falar com tanta autoridade. Toda a força e todo o deleite de seu coração estavam em Deus e em conformidade com isso exortava a cidade de Zurique a confiar somente nele". "Esta maneira de pregar é uma inovação!" – exclamavam alguns – "e uma inovação leva a outra; onde irá isto parar?". "Não é a maneira nova", respondia Zwínglio, com modos cortezes e brandos, "pelo contrário é antiga. Recordem-se dos sermões de Crisóstomo sobre S. Mateus, e de Agostinho sobre S. João". Com estas respostas pacíficas, desarmava muitas vezes os seus adversários, chegando até com freqüência a atraí-los a si. Neste ponto ele apresenta um notável contraste com o rude e enérgico Lutero.

Estava Zwínglio em Zurique havia pouco mais ou menos um ano quando a peste visitou a Suíça, e o reformador foi atacado por ela. Ele orou a Deus sinceramente pelo seu restabelecimento e obteve resposta para a sua oração, e a misericórdia divina em o poupar foi mais um incentivo para uma devoção ainda mais profunda. O poder da sua pregação aumentava sempre, e seguiu-se um tempo de muita benção, convertendo-se centenas de pessoas; e por este motivo os padres ficavam encolerizados e indignados. Zwínglio convidou-os mais do que uma vez para uma disputa pública, mas eles receavam o convite, e por fim, para fazerem calar o reformador, apelaram para o Estado. Este apelo foi a ruína deles, porque o Estado decretou: "Visto que Úlrico Zwinglio tinha por diferentes vezes convidado publicamente os contrários à sua doutrina a contradizê-la com argumentos das Escrituras, e visto que apesar disto nenhum o tinha querido fazer, ele podia continuar a anunciar e pregar a Palavra de Deus exatamente como até então. E também que todos os ministros de religião, quer residentes na cidade quer no campo, se absteriam de ensinar qualquer doutrina que não pudessem provar pelas Escrituras; e que deveriam igualmente evitar fazer acusações de heresia e outras alegações escandalosas, sob pena de castigo severo". Assim se viu Roma presa na própria rede que armara, e mais uma vez vencida, enquanto que o decreto se tornou um poderoso impulso para a Reforma.
Oferta do Papa a Zwínglio
Entretanto o papa (Adriano VI), que tinha estado a ameaçar a Saxônia com os seus anátemas, recebeu as alarmantes notícias do movimento na Suíça, e, temendo os efeitos de uma segunda reforma, experimentou um novo estratagema com Zwínglio. Sabia que o reformador suíço era um homem mais delicado do que Lutero, e por isso enviou-lhe uma carta mui lisonjeira, certificando-o da sua amizade especial, e chamando-lhe seu "amado filho" e fez acompanhar esta epístola assucarada de provas evidentes da sua consideração. Quando Myconius perguntou ao portador do breve papel o que era que o papa lhe tinha encarregado de oferecer a Zwínglio, recebeu esta resposta: "Tudo menos a cadeira de S. Pedro". Mas Zwínglio conhecia bem a astúcia de Roma, e preferiu a liberdade com que Jesus Cristo o tinha libertado, ao jugo de superstição, e a um barrete de cardeal.
Progresso da Reforma
Depois deste acontecimento a Reforma ganhou terreno com muita rapidez, e o reformador recebia constantes incentivos para a obra e as mais agradáveis provas de que Deus estava com ele. Em Janeiro de 1524 foi publicado um decreto que determinava que as imagens fossem destruídas; em abril de 1525 foi abolida a missa, e determinado que desde então, pela vontade de Deus, fosse a Ceia do Senhor celebrada conforme fora instituída por Cristo, e o costume apostólico. Mais tarde ainda, chegou a notícia da conversão das freiras do poderoso convento de Konigsfeldt, onde os escritos de Zwínglio tinham entrado; e o coração do reformador exultou quando recebeu uma carta que lhe tinha sido dirigida por uma dessas convertidas. Isto foi um golpe terrível para Roma. O efeito que um Evangelho claro e simples produziu nas freiras foi mostrar-lhes a inutilidade de uma vida de celibato e solidão, e pediram ao governo licença para sair do convento. O concílio, mal compreendendo as razões que elas tinham para isso, e assustado com aquele pedido, prometeu-lhes que a disciplina do convento seria menos severa e que lhes aumentaria a pensão. "Não é a liberdade da carne que nós pedimos", responderam elas, "mas sim a liberdade do Espírito". O pedido das freiras foi satisfeito porque o próprio Concílio ficou também esclarecido; e não foram só as freiras de Konigsfeldt que foram libertas; as portas de todos os conventos foram abertas de par em par, e a oferta de liberdade estendeu-se a todas as internas.
Efeitos da Reforma em Berna
Em Berna o poder da verdade manifestou-se de outro modo, não menos interessante. Os magistrados em sinal de regozijo pela grande obra, soltaram vários prisioneiros, e concederam completo perdão a dois desgraçados que estavam esperando o dia da sua execução: "Um grande grito", escreve Bullinger, discípulo de Zwínglio, "ressoou por toda a parte. Num dia Roma decaiu em todo o país, sem traições, sem violências, sem seduções; unicamente pela força da verdade". Os felizes cidadãos, despertados pelo poder da verdade, exprimiram os sentimentos dos seus corações da maneira mais generosa. "Se um rei, ou imperador, nosso aliado", diziam eles, "estivesse para entrar na nossa cidade, não perdoaríamos nós as ofensas, e não auxiliaríamos os pobres? E agora que o Rei dos reis, o Príncipe da paz, o Filho de Deus, o Salvador do gênero humano está conosco, e trouxe consigo o perdão dos pecados, a nós que merecíamos ser expulsos da sua presença, que melhor podemos nós fazer para celebrar a sua chegada à nossa cidade do que perdoar aqueles que nos ofenderam?"
A Obra em Basiléia
Em Basiléia, uma das comarcas mais poderosas da Suíça, as doutrinas da Reforma espalharam-se com incrível rapidez, e produziram os melhores resultados. Os zelosos burgueses limparam o país das suas imagens, e quando o humilde e piedoso Oecolâmpade (o Melanchton da reforma Suíça), acabou de completar um ministério fiel de seis anos na comarca, adotaram em todas as igrejas o culto reformado, que foi firmemente estabelecido por um decreto do Senado.

O coração exulta ao descrever esta gloriosa obra de Deus, e sentimos não poder continuar uma tarefa tão agradável, mas falta-nos espaço.


A REFORMA PROTESTANTE
Zelo de Lutero na Reforma (1521-1529)

Os Desordeiros de Zwickau
Voltemos agora a Lutero, a quem deixamos no solitário castelo de Wartburgo, entregue à tradução da Bíblia. Durante a sua permanência ali não havia ninguém que pudesse cabalmente levar por diante a obra que ele tinha empreendido na Alemanha; e este pensamento – porque ele estava a par de tudo quanto se passava fora do castelo – fazia-o estar ansioso e agitado, e por fim levou-o a voltar a Wittenberg. Melanchton era tão instruído como ele, e, sem dúvida, não era menos firme na sua devoção pela causa que ambos defendiam, mas era muito brando e pacífico para o rude trabalho que Lutero tinha começado, e não parecia estar em condições de poder dirigir o movimento reformador naqueles tempos tumultuosos. Havia ali também André Carlostadt, um doutor em Wittenberg, bastante versado nas Escrituras Sagradas, mas com algumas idéias erradas na sua teologia, e além disso arrojado demais para se poder confiar nele como chefe. Os seus atos eram tão imprudentes que quando em Zwinckau se levantou um grupo de homens com o fim manifesto de abolir sumariamente tudo que não estivesse expressamente prescrito na Bíblia, ele aplaudiu esse procedimento, e colocou-se à frente deles. Imagens, crucifixos, missas, vestes sacerdotais, confissões, hóstias, jejuns, cerimônias, decorações de igrejas – tudo estava para ser imediatamente varrido pela destruição; e todo o Cristianismo se devia revolucionar, pelas influências combinadas do Evangelho e da espada.

Lutero logo que teve conhecimento disto, escreveu de Wartburgo aos amotinadores, dizendo-lhes que não aprovava o seu procedimento, nem se poria ao lado deles neste caso. "Tinha sido", dizia ele, "empreendido sem termos, com muito atrevimento e violência... Acreditem-me, eu conheço bastante o Demônio; só ele podia fazer as coisas deste modo, para trazer vergonha sobre a Palavra". As suas advertências foram porém inúteis; as medidas que ele propunham eram muito brandas e moderadas para os iconoclastas de Wittenberg, e foram por diante com as suas inovações.
Volta de Lutero para Wittenberg
Tendo aumentado o tumulto, Lutero fechou os olhos ao próprio perigo, e, saindo do seu esconderijo, partiu para Wittenberg. Foi em vão que o príncipe lhe fez ver o perigo a que ele se expunha, e lhe mostrou a qualidade do inimigo que tinha no duque Jorge, por cujos territórios havia de passar. "Uma coisa posso dizer", escreveu ele, "se as coisas estivessem em Leipzig como estão em Wittenberg, para ali mesmo me dirigia, ainda que chovesse duques Jorges durante nove dias, e que cada um deles fosse nove vezes mais feroz do que este. Portanto direi a Vossa Alteza (apesar de Vossa Altezar saber muito bem), que vou a Wittenberg sob uma proteção muito mais forte do que a de Vossa Alteza".

Ao chegar a Wittenberg em Março de 1522, Lutero começou uma série de sermões, oito ao todo, sobre os fanáticos de Zwickau, nos quais tratou dos diferentes assuntos com um tato pouco vulgar. Estes sermões constituem um tesouro, e foram admiravelmente adaptados à ocasião a que se destinaram. No seu estilo vigoroso e picante fez-lhes ver o deplorável fim a que um tal excesso de zelo levaria sem dúvida o povo; disse-lhes que lhes faltava caridade, sem a qual a sua fé de pouco valia; que sabiam melhor falar das doutrinas que lhes eram pregadas, do que pô-las em prática; e que não tinham paciência e estavam prontos de mais a sustentar os seus próprios direitos: "Neste mundo", disse ele, "não se deve fazer tudo aquilo a que se tem direito, mas antes renunciar o próprio direito, e considerar, pelo contrário, o que é útil e vantajoso para os nossos irmãos. Não imagineis que aquilo que ‘deve ser' ‘há de ser' forçosamente, como estais fazendo, para que não tenhais de responder por aqueles que tendes desencaminhado pela vossa liberdade pouco caridosa". Estes sermões tiveram o efeito desejado. A agitação apaziguou-se, seguindo-se-lhe o sossego e a tranqüilidade. Os estudados voltaram pacificamente aos seus estudos e o povo, às suas casas; e o príncipe não pôde deixar de reconhecer que Lutero tinha feito bem em sair de Wartburgo.
Tradução da Bíblia
Em seguida continuou a tradução da Bíblia, sendo muito auxiliado na árdua tarefa pelas revisões críticas de Melanchton. Poucos meses depois o Novo Testamento estava pronto, e em Setembro de 1522 publicado. Foi recebido pelos seus compatriotas com muito entusiasmo, e teve de publicar uma segunda edição no espaço de dois meses, e em dez anos nada menos de cinqüenta e três edições se tinham publicado só na Alemanha! Então foi adicionado também o Velho Testamento. O povo alemão tinha agora uma Bíblia completa na sua própria língua, e isto contribuiu mais para a consolidação e propagação das doutrinas reformadas do que todos os escritos de Lutero juntos.

A Reforma estava agora assentada na sua verdadeira base – a Palavra de Deus. Até aqui falara Lutero. Agora é o próprio Deus que fala ao coração e à consciência dos homens. A sua Palavra era agora acessível a todos, e a Roma papal tinha recebido um choque do qual nunca se poderia restabelecer completamente. Pouco depois foi dirigido ao papa, por um concílio de bispos católicos-romanos, um memorial sobre o assunto: "O melhor conselho", disseram eles, "que podemos dar à sua santidade é que devemos empregar todos os esforços para se evitar a leitura do Evangelho em língua vulgar... O Novo Testamento é um livro que tem dado mais ocasião a maiores distúrbios, e estes distúrbios têm quase arruinado a nossa igreja. Na verdade, se prestarmos séria atenção às Escrituras e as compararmos com o que geralmente se encontra nas nossas igrejas, verse-á uma grande diferença entre umas e outras; e que a doutrina do reformador é inteiramente diferente da nossa e em muitos respeitos diametralmente oposta a ela". Era assim que Roma se julgava a si própria; e que o poder da Palavra era reconhecido por aqueles que praticamente negavam a sua autoridade.
Progresso da Reforma
No entanto, a Reforma continuava a ganhar terreno, e o interesse que o primeiro ato de Lutero tinha despertado não diminuía com o decorrer do tempo. O povo em toda a parte escutava a Palavra com prazer, chorando muitas vezes de alegria ao ouvir as boas-novas. Em Zwickau e Anaberg, as multidões ávidas rodeavam os púlpitos dos reformadores, e escutavam-nos dias inteiros; e quando Lutero pregou o seu primeiro sermão em Leipzig aquela grande multidão de gente caiu de joelhos e bendisse a Deus pela Palavra que seu servo tinha o privilégio de falar. Os folhetos e os sermões do reformador eram levados de cidade em cidade; os vendedores ambulantes levavam-nos às aldeias mais distantes, e os navios transportavam-nos de porto em porto, introduzindo-os em todos os países onde houvesse homens bastante instruídos para os receber. Três anos depois do começo da Reforma, houve um viajante que comprou algumas das obras de Lutero em Jerusalém.
Oposição de Roma
Roma, como se pode supor, não descansava no caso, e fulminava os reformadores com as suas maldições numa cólera vã. "Heresia! Heresia!" ouvia-se por toda a parte, enquanto as excomunhões se multiplicavam e os editos reais se publicavam em número cada vez maior. Alguns pregadores do Evangelho foram presos, torturados, queimados, mas isso de nada servia: a Bíblia estava nas mãos do povo, e a resistência era inútil. As mulheres mais simples estavam sentadas ao pé das suas rocas, com as suas Bíblias no regaço, e confundiam os monges que vinham discutir com elas. Tinha-se levantado uma nova ordem de coisas, mas o poder que tinha produzido estes efeitos não provinham do homem. Era um poder que até ali tinha forças para esmagar, e era poderoso para destruir as fortalezas do inimigo.

A Reforma estava ainda em começo quando rebentou a guerra dos camponeses, que lhe fez sofrer um grande atraso. Era o seu chefe um fanático chamado Tomás Münzer, homem que tinha tomado parte notável nos motins de Wittenberg, durante a reclusão de Lutero ao castelo de Wartburgo. Depois disso estabeleceu-se em Mulhausen, e empreendeu a sua grande obra (como ele lhe chamava) de derrubar o "reino pagão" e de exterminar os ímpios.
Revolta dos Camponeses da Alta Alemanha
Os camponeses oprimidos ouviram-no com alegria, e correram às armas. Lutero, a princípio, foi ao encontro deles com a Palavra de Deus e com razões moderadas; mas quando se insurrecionaram abertamente, então escreveu contra eles, e chamou-lhes de ladrões e assassinos. As províncias da Alta Alemanha estavam agora mergulhadas em anarquia e confusão. A plebe, estimulada por um êxito temporário, e furiosa com a lembrança da injustiça e opressão que tinha sofrido, precipitava-se para aqui e acolá, queimando e destruindo palácios, igrejas, conventos, até que por fim foram vencidos em Frankenhaussem pelo príncipe de Hesse, e totalmente derrotados. O seu ato temerário de rebelião não lhes serviu de nada, e quando voltaram para as suas casas, viram que com ele tinham aumentado seus males. Condenar sem distinção todos aqueles que tivessem tomado a mais insignificante parte no movimento, era agora a política do partido papal; e daí todos os males provenientes da guerra dos camponeses foram injustamente atribuídos à influência da obra de Lutero. A Reforma não sofreu pouco por causa dessa falsa acusação.
Movimento Divergente
Por essa época apareceram os anabatistas, assim chamados por sustentarem a doutrina de que o batismo devia ter lugar por imersão, e que os que tivessem sido batizados na infância deviam ser novamente batizados.

Os chefes deste movimento asseveravam que eram eles os verdadeiros reformadores, e anunciavam que o reino de Cristo estava prestes a manifestar-se. Tinham, porém alguns excessos: achavam que deveriam ter todas as coisas em comum, e que não deviam ser obrigados a pagar dízimos nem tributos... Eles aumentavam em número, e apresentavam uma vida muito rigorosa, assim como uma grande coragem na morte de mártires, quer seja por meio de fogo ou de água. O movimento continuou a aumentar, apesar da perseguição, até o martírio dos seus principais chefes.
O Conselho de Spires
Pouco mais ou menos por este tempo os três mais poderosos príncipes da Europa, Henrique VIII da Inglaterra, Carlos V da Alemanha e Francisco I da França, uniram-se com o papa para a supressão dos perturbadores da religião católica e para se vingarem dos ultrages que tinham sido feitos à "Santa" Sé. Para esse fim foi convocado em Spires um Conselho de nobres, no ano de 1526, a que presidiu o príncipe Fernando, irmão do imperador. Foi lida aos príncipes reunidos uma mensagem imperial ordenando que fosse prontamente cumprido o edito de Worms contra Lutero. Mas isso não deu o resultado com que os amigos do papismo tinham tão ardentemente contado; e, em vez de entregarem o reformador à mercê de Roma, o Conselho submeteu ao imperador os seguintes itens: que eles fariam todos os esforços para aumentar a glória de Deus e manter uma doutrina em conformidade com a sua Palavra, e davam graças a Deus por ter feito reviver no tempo próprio a verdadeira doutrina de justificação; que não permitiriam a extinção da verdade que Deus lhes tinha revelado ultimamente.

Confiante, apesar da derrota, o imperador três anos mais tarde reuniu um segundo Conselho na mesma cidade. Os seus modos eram coléricos e despóticos, mas os nobres que defendiam a Reforma estavam tranqüilos e resolutos. Naqueles tempos estas qualidades eram muito necessárias. Ninguém esperava a inflexibilidade dos nobres, e a presença de um tal espírito entre eles era um novo elemento do Conselho alemão. Até ali o imperador tinha tido fama de exercer um poder absoluto, mas ia ter lugar uma crise na história da Reforma, e aquilo por que lutavam os nobres não tinha sido reconhecido pela política humana. Foi isto que o imperador não compreendeu.
Origem da Palavra “Protestante”
Fernando presidiu novamente a este Conselho e, sentindo que estava iminente uma crise, recorreu a medidas desesperadas. Usando a autoridade que ele ali representava, ordenou imperiosamente a submissão dos príncipes alemães ao edito de Worms. A sua conduta foi mais caracterizada pelo atrevimento do que pela sabedoria, e só serviu para agravar o sentimento que já existia. Para dar uma saída ao negócio, publicou-se um decreto resumindo as ordens do imperador, que os fidalgos católicos assinaram.

Foi aquele um momento de ansiedade para Lutero e a Reforma, mas o grupo reformador teve forças para sustentar a luta no Conselho. Sem receio da altivez de Fernando, e impassíveis às ameaças dos bispos, uniram-se em um grupo e no dia seguinte levaram seu protesto contra a decisão da assembléia. E foi o começo do Protestantismo, e do Período de Sardo na História da Igreja.


A REFORMA PROTESTANTE
O Formalismo Depois da Reforma (1529-1530)
A Política e a Reforma
Vamos agora tratar deste importante período, que foi previsto na carta à igreja de Sardo, no Apocalipse, e devemos ter muito cuidado em distinguir entre a obra da Reforma e o formalismo morto que se desenvolveu a par dela, pois que logo que experimentaram bem o poder emancipador das doutrinas reformadas, aqueles que as tinham abraçado, esquecendo a suficiência do seu Cabeça que estava no Céu, e receando novos assaltos da parte de Roma, colocaram-se sob a proteção dos magistrados civis. Satisfeitos com esta segurança, entregaram-se imediatamente ao gozo dos seus novos privilégios, e em pouco tempo tinham caído num estado deplorável de inércia e torpeza espirituais. As palavras do Espírito à igreja que está em Sardo são estas: "Eu sei as tuas obras, que tens nome de que vives, e estás morto. Sê vigilante, e confirma o resto que estava para morrer; porque não achei as tuas obras perfeitas diante de Deus. Lembra-te pois do que tens recebido, e guarda-o, e arrepende-te" (Ap 3.1-3).

Todos os historiadores concordam em que o segundo Conselho da Spires marca o começo do protestantismo, mas talvez nem todos haviam de concordar com a seguinte opinião que, não obstante, merece a nossa consideração: "Na Reforma", diz Kelly, "ao fugirem do papismo, os cristãos caíram no erro de pôr a igreja nas mãos dos magistrados civis, ou fizeram a própria igreja depositária desse poder; enquanto que Cristo, pelo seu Espírito, deve ainda exercer o ofício de Senhor da Igreja".

O protestantismo errou, desde o princípio, no ponto eclesiástico, porque considerava o chefe civil como aquele em cujas mãos estava investida a autoridade eclesiástica, de modo que, se a Igreja tivesse sido, sob o papismo, o chefe do mundo, o mundo ter-se-ia tornado, sob o protestantismo, o chefe da Igreja. O leitor pode estranhar, à primeira vista, o que fica dito; mas estamos persuadidos de que, meditando e orando, há de chegar a igual conclusão.
Proteção dos Príncipes ao Movimento
A reforma alemã não começou pelas classes mais baixas, como aconteceu na Suíça. Na Alemanha os príncipes puseram-se à frente, ajudando a causa, e adotando as opiniões dos reformadores, mas quando os luteranos começaram a sentir seriamente a necessidade de uma constituição eclesiástica para as igrejas, em vez de seguirem as instruções da Palavra de Deus, adotaram para seu uso um sistema de leis e princípios que o príncipe de Hesse coordenou. E assim as igrejas reformadas tiveram logo uma constituição puramente humana e política.

O bondoso príncipe de Saxônia Frederico, o Sábio, morreu no ano 1525, e o seu sucessor João, um Luterano valente, deu um grande impulso à obra da Reforma. Como um meio de reprimir a autoridade do papa, assumiu uma completa jurisdição em matéria religiosa, demitindo homens incompetentes e preenchendo os lugares destes com luteranos piedosos e aprovados. Outros príncipes seguiram seu exemplo, introduzindo na igreja sistemas de governo que eram meramente organizações humanas, e assim se estabeleceram as primeiras igrejas luteranas. Sempre que se tomem medidas precipitadas em matérias de importância há de se encontrar oposição. Até aqui a moderação de Frederico tinha conservado os partidos católicos e luteranos até certo ponto, porém as medidas enérgicas e extremas do seu sucessor alarmaram os príncipes católicos, que formaram uma aliança entre si para reprimir o progresso das doutrinas reformadas nos seus respectivos territórios. A separação tornou-se irremediável. Uma grande parte da Saxônia, o antigo distrito de frisões, e as colônias orientais de Alemanha eram agora protestantes; enquanto que a Áustria, Baviera, e os bispados alemães do Sul conservaram a velha religião. A guerra civil parecia inevitável, mas os pormenores desta contenda pertencem mais à história política do que à eclesiástica, e por isso não nos ocuparemos com eles.
O Imperador Resolve Convocar Outro Conselho
Quanto ao imperador, havia muito que ele tinha na sua idéia reunir um Conselho com o fim de se certificar, ele próprio, pela boca dos principais protestantes, quais eram as razões por que eles se separavam da antiga igreja.

O papa, que ainda se lembrava do procedimento dos Conselhos de Worms e Spires, opôs-se a isso, e aconselhou medidas enérgicas. "As grandes congregações", dizia ele, "só servem para introduzir opiniões populares. Não é com decretos de concílios, mas com a ponta da espada que devemos decidir as controvérsias". Carlos prometeu refletir sobre este conselho, mas, depois de vacilar por algum tempo entre as duas opiniões, optou pela sua, e convocou um conselho em Augsburgo. Logo que se conheceram as razões do imperador para convocar o conselho, os protestantes prepararam uma fórmula de confissão para ser submetida. Foi escrita por Melanchton, e nela se enumeravam claramente as principais doutrinas dos reformadores, sendo a matéria fornecida principalmente por Lutero que leu o documento e deu-lhe a sua aprovação, dizendo: "Eu nasci para ser um rude polemista; limpo a terra, arranco o joio, encho os fossos e endireito as estradas. Mas quanto ao edificar, plantar, semear, regar, embelezar o campo, isso pertence, pela graça de Deus, a Felipe Melanchton". O documento foi chamado "Confissão de Augsburgo".
Encontro do Imperador com os Príncipes
No dia 15 de junho de 1530, o imperador entrou em Augsburgo com uma comitiva importante. Os príncipes protestantes, apeando-se dos seus cavalos, foram ao seu encontro, e Carlos, com uma amabilidade igual à lealdade deles, também se apeou e estendeu cordialmente a mão a cada um deles, por sua vez. No entanto, o legado papal, o cardeal Campeggio, ficou imóvel na sua mula (parecendo haver entre eles na verdade, alguma afinidade), mas vendo que tinha cometido um erro, procurou remediá-lo lançando a bênção aos príncipes reunidos. Quando levantava as mãos para esse fim o imperador e a sua comitiva ficaram de joelhos, mas os príncipes protestantes conservavam-se de pé. Esta circunstância não tinha sido prevista, e os do partido do papa ficaram um tanto perplexos com o incidente. Mais tarde havia de se dizer uma missa na capela de Augsburgo, para solenizar a abertura do Conselho, e os protestantes ganharam mais uma vitória recusando-se a assistir a ela. Mas o astuto prelado ainda se não deu por vencido. O príncipe de Saxônia, como marechal do Império, era obrigado em tais ocasiões a ir à frente do imperador, de espada na mão, e o cardeal apresentou a idéia de que Carlos lhe ordenasse que cumprisse com o seu dever na missa do Espírito Santo, que devia preceder à abertura das seções. O príncipe concordou em assistir, mas deu a entender ao imperador que era unicamente no desempenho de um cargo civil. Ao legado estava reservado sofrer mais um desengano. A elevação da hóstia toda a congregação caiu de joelhos em adoração, mas o príncipe conservou-se de pé.
Abertura do Conselho
A abertura do conselho teve lugar no dia 20 de junho, e o imperador presidiu a ela. Imaginava-se que se trataria do assunto de religião antes de qualquer outro, mas pouco se fez nesse dia; e a leitura da "Apologia" - outro nome dado à "Confissão" - foi marcada para o dia 24.

A grande esperança dos católicos era que os protestantes não tivessem oportunidade de expor a sua causa publicamente, e no dia 24 fizeram tudo quanto estava ao seu alcance - prolongando os outros assuntos do dia - para demorar a leitura da Confissão até ser tarde demais para isso.

Foi extraordinário o tempo que o cardeal levou a apresentar as suas credenciais, e a entregar a mensagem do papa. Por seu lado o imperador também foi muito minucioso a pedir pormenores das devastações dos turcos na Áustria, e da captura de Rhodes. Assim se gastaram momentos preciosos até quase a hora de encerrar a sessão. Então fez-se notar que já era tarde demais para a leitura da Apologia. "Entregai a vossa confissão aos oficiais competentes," disse Carlos, "e ficai certos de que responderemos a ela depois de ser devidamente ponderada".

Mas aqui levantou-se uma certa oposição. Nunca ocorreu a Carlos que a sua jurisdição não se estendia às consciências dos seus súditos, nem que ele estava excedendo a sua prerrogativa pelas suas evasivas e artifícios, e não estava preparado para a resposta que recebeu. "A nossa honra está em perigo", disseram os príncipes, "e as nossas almas também; somos acusados publicamente e é publicamente que devemos responder". Que se havia de fazer? Os príncipes mostraram-se respeitosos, mas também firmes e intransigentes. "Amanhã", replicou o imperador, "ouvirei o vosso sumário - não nesta sala, mas na capela do palácio Paladino".

No dia seguinte - dia memorável na história do Cristianismo -, os chefes protestantes apresentaram-se perante o imperador. Havia duas cópias da Confissão, uma em latim, outra em alemão. Carlos desejava que se lesse a cópia latina, porém o príncipe lembrou-lhe que estavam na Alemanha, e não em Roma, e que, portanto, devia ser permitido talar em alemão. A sua proposta admitiu-se, e o chanceler Bayer levantou-se do seu lugar e leu a Confissão de um modo vagaroso e claro, sendo ouvido a uma distância considerável. Esta leitura levou pouco mais ou menos duas horas, e Pontano, um reformador notável, entregou as duas cópias da Confissão ao secretário do imperador, dizendo: "Como a graça de Deus, que há de defender a sua Causa, esta Confissão há de triunfar contra as portas do Inferno".
Resultado da Leitura da Apologia
O efeito que a leitura da Confissão produziu no público foi o mais animador possível. A extrema moderação dos protestantes era a admiração de muitos; e, diz Sekendorf: "Muitas pessoas sumamente ilustradas fizeram um juízo muito favorável do que tinham ouvido, e declararam que não teriam deixado de ouvi-lo nem por uma grande soma". "Tudo quanto os luteranos disseram é a verdade", disse o bispo de Augsburgo, "não o podemos negar". E testemunhos destes havia muitos. O duque de Baviera disse ao Dr. Eck, o maior campeão de Roma na Alemanha: "O doutor tinha-me dado uma idéia muito diferente desta doutrina e deste negócio, mas, no fim de contas, pode porventura contradizer com razões boas a Confissão feita pelo príncipe e seus amigos?" - "Não pelas Escrituras", replicou Eck, "mas pelos escritos dos padres da Igreja e dos cânones dos concílios podemos". "Então já entendo", respondeu o duque, censurando, "os luteranos tiram a sua doutrina das Escrituras e nós achamos a nossa fora das Escrituras".


 A REFORMA PROTESTANTE


Reforma na França e Suíça Francesa (1520-1592)

A instituição da Reforma na França e na Suíça Francesa deve ser considerada como uma obra um tanto moderna, relativamente à Reforma na Alemanha e na Suíça Alemã. A sua história é uma história de sangue, começando pelo martírio do eloqüente mas imprudente João Leclerc, e acabando na mortandade dos Huguenotes, em que perto de 70.000 pessoas que professavam a fé reformada foram massacradas em poucos dias.



Guilherme Farel

 


Guilherme Farel, natural de Delfinado, pode ser considerado como o apóstolo da Reforma Suíça Francesa. Aprendeu as doutrinas reformadas com um piedoso e sábio doutor de Etaples, chamado Tiago Lefèvre, e ensinou-as primeiro em Paris, onde gozou a amizade e a proteção do bispo de Meaux, Guilherme Briçonnet, o qual ensinava pessoalmente as novas doutrinas. Contudo a perseguição tornou-se, por fim, tão violenta, que foi obrigado a refugiar-se na Suíça, onde travou conhecimento com Oecolâmpade, Bucer, e outros reformadores. Em Basiléia, Montbeliard, Agle, Vallengin, St. Blaise e Neuchatel, todos lugares na Suíça Francesa, trabalhou com êxito variado, e tal foi o poder da sua pregação nessa última localidade, que o povo declarou que queria viver na fé protestante, e não ficou satisfeito enquanto a Reforma não foi legalmente estabelecida no cantão. Em Genebra onde tinha ido duas vezes, seu trabalho foi cheio de dificuldades e perigos, e tanto monges como padres fizeram várias tentativas para assassiná-lo. Por muitas vezes foi apedrejado e espancado; esteve quase para ser afogado no Reno em duas ocasiões, e uma vez foi milagrosamente salvo de morte mais penosa causada por veneno. Mas a benção do Senhor estava sobre os seus trabalhos, e em breve a missa foi oficialmente suspensa por um decreto do Concílio dos Duzentos, e apareceu um edito ordenando que os serviços de Deus haviam de ser dali por diante feitos conforme os estudos do Evangelho; e que todos os atos de idolatria papal haviam de cessar completamente.



Foram cunhadas medalhas para celebrar este acontecimento, e os cidadãos escolheram para si esta nova divisa: "Depois das trevas, luz". Resultados igualmente felizes coroaram os trabalhos do intrépido reformador em Lausane, embora a sua primeira visita ali não desse bom resultado. A importante questão foi decidida numa discussão pública que durou oito dias; e acabou por um assinalado triunfo para os protestantes.



João Calvino


Enquanto esteve em Genebra no ano de 1536, Farel travou conhecimento com Calvino, que era então um jovem de vinte e oito anos. Já se tinha tornado notável pela publicação dos seus "Institutos Cristãos", e Farel pensou que se pudesse persuadir o seu jovem amigo a ficar em Genebra para olhar pelo trabalho, ele poderia ajudar muito os interesses da Reforma. Propôs, pois, isto, mas Calvino estremeceu à idéia de tomar sobre si o peso de uma tal empresa, e recusou. Desculpou-se dizendo que não tinha conhecimento bastante para empreender aquela tarefa; que a sua educação ainda não estava completa, e pelo menos, por enquanto, só podia prestar seu auxílio por meio da pena. Mas Farel, sentindo que ele estava fugindo à vontade de Deus, respondeu à sua recusa com palavras fortes, dizendo: "Que Deus amaldiçoe o seu descanso e os seus estudos se por amor deles fugir da obra que Ele tem para lhe dar a fazer!".



Estas palavras produziram o efeito desejado no ânimo do jovem teólogo e ele abandonou os seus projetos de ir pra Strasburgo continuar os estudos, e fixou-se em Genebra. Foi nomeado professor de teologia e começou um árduo ministério de vinte e oito anos, como pastor de uma das mais importantes igrejas da cidade; e aqui estendeu logo a sua influência a todos os países da Europa. "A sua ligação com a antiga igreja", dizia Luiz Hausser, "era muito extraordinária. Ele fazia-lhe uma oposição mais forte do que ninguém. Bastantes coisas iradas e picantes se tinham, na verdade, já dito de Roma, mas nada tão esmagador tinha sido avançado contra a igreja romana em todas as polêmicas que tinham tido lugar, como aquela afirmativa de Calvino feita sem cólera e a sangue frio, de que ela era inteiramente oposta à idéia primitiva da constituição da igreja, e, portanto, foi ele considerado como o inimigo mais perigoso e implacável de Roma do que Lutero".



Mas o povo de Genebra não podia desde logo habituar-se às medidas de reforma que Calvino introduziu. Toda a cidade tinha caído no vício e no papismo, e os seus novecentos padres governaram a consciência do povo, que não gostava das restrições que Calvino punha aos seus cantos, às suas danças, e a outros divertimentos mundanos nem tampouco tolerava as suas censuras severas aos pecados menos públicos e que muitos não eram estranhos: e quando por fim os proibiu de virem ao altar, e os mandou embora com palavras de censura, o povo levantou-se em massa e expulsou-o da cidade.



Mas em breve quiseram que ele voltasse outra vez. A cidade estava em desordem, devido aos encolerizados bandos de papistas, e libertinos, e a sua presença era ali muito necessária. Os próprios que o tinham expulsado começaram a clamar em altos brados pela sua volta. "Chamemos de novo o homem que queria reformar a nossa fé, a nossa moral e as nossas liberdades", diziam eles. E assim no ano 1540, foi resolvido pelo Concílio dos Duzentos que, com o fim de promover a honra e glória de Deus, se procurassem todos os meios possíveis para que Mestre Calvino voltasse como pregador.



Calvino, de início, não tinha muita vontade de voltar, e declarou que não havia lugar na terra que ele mais temesse do que Genebra, acrescentando, porém, que não se negaria a coisa alguma que fosse o bem da igreja. Por causa dos seus amigos, resolveu voltar, sentindo que nesse passo era guiado pela vontade de Deus. A amável recepção que lhe fizeram atenuou de alguma maneira os maus tratos que lhe tinham dado, e daí por diante encontrou poucos obstáculos nos seus trabalhos para o bem do povo.



A história não levanta a cortina que esconde aos nossos olhos a vida privada e doméstica de Calvino, e por isso a sua vida não oferece tanto interesse como a de Lutero. Morreu em 17 de Maio de 1564, completamente gasto por um excesso de fadiga mental.



Morreu repetindo as palavras do apóstolo: "As aflições d'este tempo presente não são para comparar com a glória quem em nós há de..." aqui parou, porque nesse momento a glória despertou para ele.



Na Cidade de Meaux

Passemos agora de Calvino e da reformação da Suíça Francesa, e voltemos a nossa atenção para a França; observemos o progresso e as dificuldades da obra ali. Já aludimos ao trabalho de Farel e Lefèvre em Paris, e da proteção que receberam de Briçonnet, bispo de Meaux, mas foi na diocese de Briçonnet que as doutrinas reformadas foram primeiro proclamadas publicamente.



Meaux era nesse tempo uma pequena cidade ativa, cheia de operários, e esta gente simples escutava com profundo interesse as novas doutrinas do seu bispo, convertendo-se muitos deles. A obra aumentou, e os monges e frades pedintes que infestavam os arrebaldes alarmaram-se.



"Que nova heresia é esta?" exclamavam eles, "a nossa autoridade está sendo contestada, estão-nos tirando os nossos meios de subsistência; precisamos, pois, tomar medidas imediatas para reprimir estas doutrinas estranhas". Conseqüentemente, partiram para Paris, e apresentaram a sua queixa perante a Sorbona e o Parlamento, afirmando que "a cidade de Meaux, e toda a vizinhança estava infestada de heresia, e que essa heresia vinha do palácio episcopal".



Era então o reino administrado, na ausência do seu verdadeiro monarca Francisco I, pela mãe deste, uma católica fanática; e o partido reformador sabia que não podia esperar clemência da parte dela. A conduta do bispo quando foi citado perante o Parlamento, também não podia de modo algum animá-lo e protegê-lo, porquanto mostrou a maior timidez durante o seu interrogatório, chegando a ceder às propostas da Sarbona. A adoração à virgem e aos santos começou de novo; proibiram a venda e a posse das obras de Lutero e Lefèvre, Farel e quaisquer reformadores foram proibidos de pregar nos púlpitos de Meaux, e até de residirem na vizinhança.



Este começo não dava muitas esperanças. O principal reformador em Meaux abandonou a obra por medo, e os outros foram dali expulsos. Que se havia de fazer? Devia abandonar-se a obra, e devia a causa de Deus sofrer sem remédio por causa da cólera dos homens? Não. Por algum tempo continuou-se a obra em segredo, e embora nada se pudesse fazer publicamente, não se desprezou o estudo particular da Palavra, nem a oração. Então um dos membros principais do partido, o tecelão João Leclerc, fez uma proclamação na qual falava do papa em termos bruscos, e afirmava que o reino do Anticristo estava para ser destruído pelo sopro do Senhor. Colocou esta proclamação numa das portas da Catedral, onde todos a pudessem ler, e esperou o resultado.



Como se pode calcular, os monges e os padres ficaram desesperados e cheios de confusão; e Leclerc foi preso por suspeita. Quando foi julgado não fez tentativa alguma para esconder o seu ato, e depois de um julgamento que durou uns poucos dias, foi condenado a ser açoitado pela cidade afora, e a ser marcado na testa com um ferro em brasa.



Leclerc em Metz

O tecelão ainda não estava bem curado dos seus ferimentos quando voltou para a obra; mas o seu tempo de ação era outro. Tendo sido expulso de Meaux vamos encontrá-lo em Metz e no caráter de destruidor de imagens. Sentado um dia diante das imagens da Capela da Virgem, um edifício de grande celebridade, próximo àquela cidade, vieram-lhe estas palavras ao pensamento: "Não te inclinarás diante dos seus deuses, nem os servirás nem farás conforme às suas obras; antes os destruirás totalmente, e quebrarás de todo as suas estátuas" (Ex. 23.24), e tomando isto como uma ordem divina, levantou-se imediatamente, e demoliu as imagens que abundavam na capela. Feito isto entrou tranqüilamente na cidade.



A agitação que este ato produziu entre os católicos não se pode descrever, e o herege marcado foi logo preso. Como no seu primeiro julgamento, também agora confessou prontamente o seu "crime" e exortou o povo a renunciar à idolatria, e voltar para a adoração do verdadeiro Deus. Tendo-lhe sido dada a sentença de morte, apressaram-se a levá-lo para o lugar do seu martírio. Ali uma medonha morte o aguardava, mas ele agüentou tudo milagrosamente até o fim. Primeiro foi-lhe decepada a mão direita, aquela que tinha praticado o ato; em seguida rasgaram-lhe a carne com tenazes em brasa; e depois queimaram-lhe o peito horrivelmente. Mas enquanto durou esta tortura ele ia repetindo em voz clara e firme as palavras do Salmista: "Têm boca, mas não falam; olhos têm mas não vêem; têm ouvidos mas não ouvem; narizes têm mas não cheiram; têm mãos, mas não apalpam, pés têm, mas não andam; nem som algum sai-lhes da garganta. A eles se tornem semelhantes os que fazem, assim como todos que neles confiam" (Sl 115.4-8)



O seu corpo foi então consumido num fogo lento; e assim entrou no Céu o primeiro mártir da Reforma Francesa.



Mais Martírios

Daí a algum tempo chegou o martírio de um padre convertido, cujo paciente testemunho no lugar do suplício levou muitos a acreditar na verdade da causa por que morreu, e encheu-os de desejo de conhecer melhor aquele Evangelho em que ele tinha encontrado tão grande consolação. Depois chegou a vez do sábio Luis Berguin, par de França de quem Beza disse que teria sido um segundo Lutero, se tivesse encontrado em Francisco um outro Frederico de Hanover. Três vezes foi preso por pregar as doutrinas reformadas ao povo, e três vezes foi posto em liberdade por pedido da irmã do rei, a piedosa Margarida, depois rainha de Navarra. Entretanto os seus amigos, receosos e desanimados com os perigos de que estavam rodeados, instaram com ele para desistir de pregar, e para que não tentasse mais a malícia dos seus inimigos, mas enquanto os seus amigos tímidos pediam a Berguin que parasse, a voz de Deus na sua própria alma, e por meio das páginas da sua Palavra, mandava-o prosseguir e Berguin prosseguiu, e a França precisa dar graças a Deus por isso.



Por fim foi preso pela quarta vez, e conduzido perante a Sorbona. Depois de um julgamento fictício, foi condenado à prisão perpétua e a ter a sua língua furada com um ferro em brasa, mas Berguin apelou contra a decisão do tribunal, e os juízes recearam insistir na sentença em vista da sua apelação. Então decidiram que fosse estrangulado e queimado, e esta sentença foi levada por diante. No dia 22 de Abril de 1529, foi levado num carro para a praça da Gréve, entre uma escolta de seiscentos soldados, e ali suportou a morte com grande firmeza.



Os martírios tornaram-se então freqüentes, sendo contudo como outros tantos convites ao povo para se levantar por toda parte em defesa da verdade; e por cada mártir que morria, levantavam-se vinte campeões a preencher o seu lugar. Contudo a oposição era muito grande, e o número de reformadores, comparado com os inimigos da Reforma, era muito limitado.



Afixação de Cartazes

Por fim tomaram um expediente com que esperavam apressar a obra; prepararam um protesto no qual se expunham os abusos de Roma nas mais vivas cores. Por toda a França circularam cópias deste protesto, e foi particularmente combinado que fosse publicado simultaneamente em todas as cidades em uma certa noite – 18 de Outubro de 1534 (outros dizem 24), foi a data fixada para o plano; e aquela obra notável de uma só noite, deu a todo o ano o nome de "Ano dos Cartazes".



Por fim chegou essa noite – uma noite de ansiedade para os luteranos, e a ousada empresa de afixar os cartazes concluiu-se tranqüilamente e sem distúrbios. Em Paris, afixaram cópias na parede da universidade, e de todos os edifícios públicos, e as portas da catedral ficaram cobertas. Até a casa do Parlamento, e a porta do quarto de dormir do rei, não foram excetuadas; sendo porém provável que algum inimigo fosse o responsável pela colocação do cartaz ali. Chegou a manhã, e os efeitos produzidos pela descoberta não se podem descrever. A excitação era incrível; por toda a parte se levantou o grito de cólera: "Morte aos hereges!" e logo começou uma tempestade de perseguições terríveis. O rei ficou pálido de cólera quando viu o cartaz, e exclamou encolerizado: "Prendam-nos a todos, e que o luteranismo seja totalmente exterminado".



Imediatamente se fizeram inúmeras prisões, e as execuções seguiam-se uma após outra com terrível rapidez. No dia 21 de Janeiro de 1535, saiu uma procissão para expiar, como diziam, as indignidades que tinham sido praticadas contra a igreja, e passou pelas ruas concorridas de Paris numa sombria majestade, sendo as solenidades desse dia coroadas com o martírio de seis luteranos. O rei que estava presente fez um violento discurso contra as doutrinas dos reformadores. Porém quanto teria dado mais tarde para poder arrancar da sua consciência os crimes de tanto sangue, e para aliviar a sua alma das conseqüências que ele sabia estarem pesando sobre si?!



Reinado de Henrique

No ano de 1547 morreu Francisco, sucedendo-lhe Henrique, o seu filho segundo. Durante os doze anos do seu reinado a perseguição continuou com maior violência ainda, e os padres não perdiam ocasião alguma de influir no ânimo do rei contra a Reforma. Descreviam-na como sediciosa e revolucionária, e declaravam que os Huguenotes – pois este era o nome pelo qual eram conhecidos os luteranos franceses – estavam conspirando contra ele, e que as suas doutrinas arruinavam todo o poder eclesiástico e real. O rei assustou-se com estas representações, mas foi só no fim do seu reinado, quando a Reforma tinha de tal maneira tomado posse do povo, que uma sexta parte da população era de huguenotes, que ele recorreu à medida extrema de convocar um parlamento com a idéia de suprimir a "heresia".



O único incidente importante que ocorreu durante as deliberações do Parlamento, parece ter sido a prisão de um dos senadores, João Du Bourg, cujo discurso ousado a favor dos huguenotes excitou a cólera do rei, e levou-o a exclamar que havia de ver o martírio de Du Bourg, com os seus próprios olhos. Isto era, na verdade, a sua séria intenção, mas o Senhor permitiu outra coisa, e quatorze dias depois da prisão do senador, Henrique foi morto num torneio com o conde de Montgomery, o capitão dos guardas, e, coisa notável, foi este o próprio que tinha efetuado a prisão de Du Bourg.



O Rei Francisco II

A subida de Francisco II ao trono em nada melhorou a situação dos huguenotes; e o valente campeão deles, Du Bourg, depois de ter estado encarcerado seis meses, na medonha masmorra da Bastilha, durante os quais lhe negaram as coisas mais necessárias à vida, e o fizeram sofrer horríveis torturas numa gaiola de ferro, foi por fim queimado vivo.



O novo rei era quase uma criança quando subiu ao trono, e a fraqueza do seu corpo e ainda mais do seu espírito tornaram-no inteiramente incapaz de governar. Foi durante o seu reinado que a obra da Reforma em França assumiu uma feição política, e que as guerras religiosas começaram.



O Protestantismo em França tinha agora entre os seus adeptos muitos dos principais nobres do país, tais como Coligny e Sully, e os huguenotes tinham-se tornado um partido forte que já não podia ser desprezado. Havia então no país dois partidos em violenta oposição: um que tinha à sua frente Catarina de Médici, representando a antiga nobreza de França, e o outro, comandado pelos irmãos Francisco e Carlos Guise, que representava uma facção completamente nova. Francisco Guise, que era duque, dominava o exército; Carlos, que era cardial, influía nas finanças e nos negócios estrangeiros.



O Poder na Mão de Catarina

A morte de Francisco II, no ano de 1560, causou porém a derrota do partido dos Guises, e tendo Catarina de Médici, por interesse próprio, tomado debaixo da sua guarda o novo rei, Carlos XI, que então tinha dez anos, vieram assim as redás do governo para as suas mãos. Embora não tivesse fortes convicções religiosas de espécie alguma, era católica de nome, e odiava o protestantismo por causa das suas supostas tendências democráticas; mas, para consolidar o seu poder, pôs em liberdade os huguenotes que tinham sido feitos prisioneiros durante o reinado de Francisco II. Ao mesmo tempo evitava ofender os Guises, e permitia-lhes a todos os seus adeptos que ficassem nos seus cargos e postos de honra.



A Conspiração

Mas logo que viu a sua posição estabelecida com firmeza, procedeu de modo a poder realizar os seus planos para o extermínio da heresia e ruína dos huguenotes. Ajudada pelo papa Pio V, e Filipe da Espanha, viu a sua conspiração pronta para se executar no outono do ano de 1572. Aquela conspiração tinha por fim o completo massacre dos protestantes franceses.



A frente dos huguenotes achava-se o ilustre almirante Coligny, um ancião tão venerado pela sua piedade como conhecido pela sua bravura. Tinha sido necessário ganhar a sua confiança, ou pelo menos, fazer com que ele não suspeitasse do que se passava, para que um projeto tão vasto como o que Catarina e os seus cúmplices tinham formado pudesse ser levado por diante; e isto fez-se de maneira seguinte: Carlos XI que então tinha 22 anos, foi instigado por sua mãe a manifestar o sincero desejo de que se estabelecesse uma paz duradoura entre os dois partidos religiosos, e para isso foi tratado o casamento entre sua irmã, Margarida de Valois, uma católica romana, e o rei de Navarra, (depois Henrique IV) protestante. Ao princípio foi feita alguma oposição a este projeto pela mãe de Henrique, a espiritual Joana d'Albret, mas esta foi secretamente envenenada, e o casamento foi devidamente combinado e fixado para o dia 18 de Agosto de 1572, sendo convidados para a cerimônia os nobres de toda a parte do reino, tanto protestantes como católicos. Quase todos aceitaram o convite, e no dia 18 estava em Paris uma multidão de chefes dos dois partidos religiosos. O casamento solenizou-se devidamente, e durante alguns dias a metrópole francesa entregou-se a festas e alegrias, misturando-se os protestantes com os católicos sem nada suspeitarem. Mas todas estas coisas faziam parte do grande projeto, e os huguenotes deixaram-se embalar por elas. A véspera de São Bartolomeu estava próxima e as festas continuavam, assim como continuavam a existir as mesmas relações amigáveis entre todas as classes.



O Massacre da Noite de S. Bartolomeu


Carlos estava agitadíssimo ao aproximar-se a hora fatal. Tinha uma palidez mortal, e o seu corpo tremia; um medonho sentido de remorso lhe oprimindo o coração, e teria dado contra-ordem se não fossem as instâncias de sua mãe. Esta porém receando alguma indecisão, ordenara que a tragédia começasse uma hora mais cedo da que estava determinada.



Por fim o sino deu sinal e todos os campanários de Paris responderam imediatamente, e a carnificina começou. Uma das primeiras vítimas foi o almirante Coligny, que foi brutalmente assassinado. Em todas as ruas se ouvia agora o fogo dos mosqueteiros, misturado com as pragas dos papistas e os gemidos dos moribundos. Os huguenotes, atacados de surpresa, não podiam oferecer resistência, e quando rompeu a manhã podiam-se ver cadáveres aos montes por toda a parte. O sangue enchia as ruas, e o Sena corria avermelhado. A manhã não fez cessar aquela medonha obra, e já então as indecisões de Carlos se haviam desvanecido, chegando ele a uma varanda com sua mãe para deleitar a sua vista com aquela cena de carnificina. Isto durou quatro dias, e ao fim deles os assassinos pararam por puro cansaço, tendo sido assassinados uns quinhentos protestantes nobres de classe elevada, e uns cinco a dez mil huguenotes da mais humilde condição.



Mas a mortandade ainda não foi só aqui: estendeu-se pelas províncias, sendo dadas ordens a vários governadores e magistrados para que exterminassem os hereges sem piedade. Alguns obedeceram imediatamente, mas não todos. Seja dito para sua eterna honra, que um prelado católico, João Hennuyer, bispo de Lisieux, recusou-se a incorrer no crime de um ato tão odioso, e quando o mensageiro do rei apresentou a ordem ele disse: "Não! Não, Senhor! Oponho-me e sempre me oporei à execução de uma tal ordem. Eu sou o pastor de Lisieux, e esta gente a que me mandam assassinar pertence ao meu rebanho. Apesar de se terem agora desviado e abandonado a pastagem do soberano Pastor, Ele confiou-as aos meus cuidados, e ainda podem voltar. Eu não vejo no Evangelho que o pastor possa permitir que o sangue das suas ovelhas seja derramado; pelo contrário, vejo ali que ele é obrigado a dar o seu sangue e a sua vida por elas". Nobre testemunho! É com alegria que o recordamos aqui, embora as nossas idéias sejam tão completamente diferentes das do ousado João Hennuyer no que diz respeito às doutrinas que ele ensinava. O governador de Bayona foi outro que se recusou a obedecer à ordem assassina: "O rei tem muitos soldados valentes no seu exército", disse ele, "mas nem um só carrasco".



A carnificina nas províncias continuou durante seis semanas, e o número de vítimas é diversamente calculado em cinqüenta, setenta e cem mil. Este último número, se levarmos em conta os que depois morreram de fome e pesar, é talvez o mais exato.



Roma manifestou uma alegria ruidosa às primeiras notícias que teve da carnificina. O mensageiro que as levou foi recompensado pelo cardeal de Lorraine, com mil coroas; houve salvas de artilharia, e, à noite, brilhantes iluminações. Foi celebrando uma solene "Te Deum" na igreja de São Marcos em ação de graças a Deus, por tão assinalada notícia de bênção enviada à Sé de Roma, enquanto em Paris foi cunhada uma moeda com a seguinte inscrição: "Pietas armavit justitan" (Piedade armou a justiça). Se alguma vez se viu uma astúcia diabólica na maldade do homem, foi esta. A premeditação, os solenes juramentos do rei – que trouxeram os calvinistas a Paris – no casamento real, e o punhal posto nas mãos da multidão pelos chefes do Estado nesse tempo de paz universal, tudo isto representa uma conspiração e uma crueldade que não há iguais na História. E depois, começando pelo papa, todas as comunidades católico-romanas, levantando as mãos ao Céu, deram um graças a Deus pelo "glorioso" triunfo.



Mas uma solene recompensa aguardava os autores deste crime inominável da "Santa" igreja romana: Todos, exceto um, tiveram um fim violento. Carlos morreu, uns dois anos depois, em horríveis agonias de corpo e alma; e ouviam-no exclamar, pouco antes de morrer: "Que carnificina! Quanto sangue inocente! Como foram perversos os conselhos que eu segui! Oh! Meu Deus, perdoa-me e compadece-te de mim! Eu não sei onde estou, tão medonha é a minha agonia e perplexidade. Qual será o fim disto? Que será feito de mim? Estou perdido para sempre!". O Duque de Guise foi assassinado, o seu irmão, o cardeal de Lorraine, morreu doido furioso; e a miserável Catarina de Médici, embora chegasse a uma desonrada idade avançada, foi encarcerada pelo seu filho favorito, sendo o seu nome, em todo mundo, sinônimo de perfídia e crueldade.



E a chamada heresia dos huguenotes não foi exterminada, embora morressem cem mil deles. Aquele que tinha lançado a semente incorruptível do Evangelho nos seus corações podia também lançá-la rapidamente nos corações de outros cem mil, e assim aconteceu. Uma longa série de pequenas guerras entre huguenotes e católicos teve lugar no reinado de Henrique, sucessor de Carlos, e quando, em 1589, ele foi assassinado, foi um príncipe protestante, Henrique de Navarra, que lhe sucedeu no trono da França!